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Capítulo 58
Tudo o que
se podia ouvir eram os sons de uma natureza cheia de vida. O toque do vento na
copa das árvores, o barulho da fauna selvagem de Pokémon que faziam seus ninhos
tanto nos galhos das árvores quanto nas gramas que cobriam o solo fértil, o
cheiro das flores, ingredientes indispensáveis em um local daqueles. Os Pokémon
que viviam ali estavam acostumados à presença dos seres humanos que costumavam
trafegar por ali em busca da Cidade de Goldenrod, a maior metrópole da região
de Johto, que sediava alguns dos principais centros econômicos do Mundo Pokémon
e por onde passava o Trem Magnético, um dos principais meios de ligação entre
Kanto e Johto.
Ethan, Amy
e Forrest caminhavam por entre as árvores da Floresta Ilex concentrados em
localizar um Farfetch’d que, por acidente, deixaram escapar e foram obrigados a
encontrá-lo. Os garotos mal percebiam que iam se aproximando de um santuário de
madeira construído no coração daquela floresta. Naquele ponto, as flores
estavam abertas emanando um perfume maravilhoso que encantava quem o sentisse.
Até as árvores pareciam se curvar para aquela pequena construção que só foi
percebida pelo trio quando estava a poucos metros à frente.
Logo, a
placa talhada a mão foi o objeto para a qual a atenção dos três fora dirigida.
— O que é
isso? — perguntou Forrest.
— “Esse
santuário foi construído em homenagem ao Guardião da Floresta Ilex: Celebi”. —
leu Ethan.
—
“Celebi...”? — questionou-se Amy atenta.
— Hey! Eu
já ouvi falar nesse santuário! Minha mãe me contou uma história sobre ele...
Muitas pessoas dizem que o santuário é um símbolo de boa sorte e afasta os maus
espíritos da floresta. Outras dizem que o santuário está ligado ao Lendário
Pokémon, Celebi, e que este vive no interior do santuário da floresta, como um
guardião da floresta — disse Ethan.
A bolsa de
Amy soltou um estampido. Segundos depois, uma forte luz branca emanou dela e a
PokéBola GS começou a flutuar de dentro da bolsa.
— Celebi! —
a voz de um Pokémon ecoava forte pela floresta.
Os garotos
sentiram os pés saírem do chão. Eles foram cercados por uma luz verde-oliva que
se transformou em um portal brilhante que se dividiu, porém não se fundiu. Os
dois portais independentes se contraíram e, enquanto Ethan, Amy e Forrest eram
sugados pelo primeiro que foi se selando, o segundo foi se expandindo e
crescendo enquanto fazia com que duas pessoas fossem depositadas gentilmente no
chão da floresta. Agarrada à dupla, dois Pokémon: Um Pikachu cujo pelo amarelo
era levemente mais escuro do que os demais de sua espécie e uma Eevee, cujos
pelos da ponta de seu elegante rabo tinham o engraçado formato de um coração.
O menino, a
menina e seus dois Pokémon permaneceram desacordados enquanto o portal
verde-oliva se fechava e a floresta voltava a se silenciar.
***
Ethan
estava em coma. Os socos e chutes da surra que levou foram tão sérios que assim que os médicos começaram a tratá-lo, o garoto perdeu a consciência e
assim permaneceu, inconsciente, por três longos dias.
Marieta encontrava-se ao lado da cama do filho. As olheiras eram um sinal claro de que a
mulher havia passado noites sem dormir e as dezenas de copinhos que jaziam
descartados em uma lixeira na saída do quarto provavam que ela estava há muito
tempo lutando contra o sono. Sua rotina tem sido a mesma naquelas últimas 72 horas,
era a primeira a entrar, ao longo do dia insistia em auxiliar enfermeiros na
aplicação dos medicamentos do garoto e era a última a sair, frequentemente após
grande insistência da equipe médica, que às vezes se dava por vencida e só a
retirava quase duas horas após o final do horário de visitas. Dona Marieta já
era conhecida por ser uma moradora bastante pulso firme em New Bark, mas, no
Hospital Geral de Blackthorn pra onde Ethan havia sido transferido, os próprios
médicos tinham medo da mulher. Até a mais ignorante pessoa sabe que uma leoa
pode até ser feroz, mas se torna uma arma letal para proteger seu filhote.
O ataque a
Ethan chamou a atenção também da polícia, que foi a primeira a chegar ao local
após o acontecido. Os policiais continuavam investigando por semanas a fio, mas
não conseguiram identificar quem ou quais foram os agressores, e o caso só
poderia andar quando — e se — Ethan acordasse.
Ethan, no
entanto, era um informante do governo e seu espancamento misterioso foi motivo
o suficiente para que a Polícia Internacional entrasse em ação, para
descontentamento de Lance, o campeão da Liga Pokémon. Três batidas na porta
foram o suficiente para que o ruivo, que apoiava os cotovelos em cima da grande
mesa de madeira em formato de meia-lua, e repousava a cabeça em cima das mãos
soltasse uma baforada impaciente.
— Entre.
Ele era um
homem alto, esbelto, caucasiano, com cabelos pretos e olhos castanhos com
olheiras que faziam com que ele aparentasse ser mais velho do que realmente era.
Vestia um sobretudo marrom em cima de um terno de mesma cor perfeitamente
alinhado. Seu olhar sério não demonstrava admiração pela excentricidade da sala
do campeão, que não esbanjou cordialidade ao recebê-lo.
— Feche a
porta. Imagino que o assunto seja particular.
O homem
acatou a sugestão e fechou a porta suavemente. Caminhou a passos firmes até o
campeão da Elite 4 e, da parte interior do sobretudo, retirou um distintivo.
— Senhor
Lance, eu sou agente da Polícia Internacional. Me chame de “o Observador”.
Lance
levantou a sobrancelha direita e deu um sorrisinho de canto de boca.
— Bastante
excêntrico o nome do senhor. Deveria ter usado em inglês... Algo como “looker” se encaixaria bem melhor, não
acha?
—
Felizmente não estou aqui para saber o que o senhor acha da minha alcunha.
Lance deu
um sorriso de canto de boca e baforou pelo nariz. Ergueu-se de sua cadeira e
foi até um canto de sua sala, onde jazia uma mesa de acrílico onde se
encontrava um filtro de água mineral e, ao lado, uma bandeja onde duas garrafas
de plástico, uma na cor vermelha e a outra na cor azul, acompanhada de diversas
xícaras de porcelana de diversos tamanhos. Na garrafa vermelha, havia café. Na
azul, chá. O ruivo olhou para o agente e, com um gesto de cabeça, ofereceu algo
para o Observador, que respondeu com um gesto negativo. Lance deu de ombros e
serviu-se de uma xícara de café, adoçando-o com pelo menos dez colherinhas de
açúcar meticulosamente contadas. Nem uma a mais, nem uma a menos.
Lance
retornou com a xícara até a frente do detetive e sentou-se em cima da mesa,
apoiando a perna esquerda em cima da direita enquanto bebericava seu café.
— Em que
posso ajudá-lo? — questionou Lance.
— Anteontem, um espião da Liga Pokémon foi espancado até desmaiar durante uma investigação federal envolvendo a Equipe Rocket. Como você explica
isso?
Lance deu
mais uma golada em seu café e pareceu refletir um pouco antes de responder.
— São
adolescentes. Não tenho como controlar os hormônios de cada treinador Pokémon
que a Elite 4 monitora.
— Mas tem o
dever de evitar que ocorra justamente o que aconteceu. O garoto abandonou seus
Pokémon também, pelo o que me consta. Isso pode fazê-lo perder a licença de
treinador, você sabe, não é?
—
Novamente, eu não tenho como controlar. São hormônios. Acredito que o senhor
deva ter passado por isso também. É só uma fase.
O detetive
cruzou os braços em visível insatisfação.
— Bem, se o
garoto morrer, o culpado vai ser você. Fique longe da Equipe Rocket, ela é um
assunto da Policia Internacional.
— Enquanto
ela estiver agindo no território de Johto, ela é meu problema.
— Parece
que você está por fora da gravidade da situação. Desde que os integrantes da
organização explodiram o próprio quartel-general em um ato insano, não se tem
mais noticias sobre seu paradeiro. Eles poderiam estar em qualquer lugar.
— Mas eu
tenho plena convicção de que eles ainda estão em Johto.
O
Observador franziu o cenho.
— Como é
que você pode ter certeza disso?
— Amanda
Green — respondeu Lance dando outra golada no café.
— Ela não
esteve envolvida nos acontecimentos em Mahogany? Por que ela ainda não foi
capturada e entregue a nós?
Lance deu
um sorrisinho satisfeito.
— Achei que
vocês, federais, estavam por dentro de tudo.
— Não
desvie o assunto, senhor Lance. Por que você está ocultando informações?
— Amanda
Green é uma peça fundamental na investigação da Equipe Rocket. Como disse ao
senhor, não posso controlar os hormônios dos treinadores aliados à Liga
Pokémon, mas isso não signifique que eu não esteja por dentro de tudo o que
acontece com eles.
— Então por
que é que o espancamento do garoto Ethan Heart não foi evitado? Essas crianças
deveriam estar sendo vigiadas de perto, senhor Lance.
— Eu sei.
— E por que
não faz nada?
— Eu sei
que o senhor está gravando, então eu espero que a minha voz fique bastante
clara com a resposta que darei nesse momento — disse Lance antes de dar o
último golpe em seu café para prosseguir. — Nenhum deus intervém na humanidade.
Deixem os homens se matarem. Se Arceus existir, ele deve ter um humor bastante
sarcástico, não acha?
O detetive
afrouxou os braços cruzados e enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo.
— Por quê?
— O mundo
se acabando, gente se matando, cientistas brincando de deuses e dando vida a
Pokémon... Ele deve rir tendo a certeza de que a gente vai se matar antes de
Ele próprio tomar alguma iniciativa pra isso. Eu não intervenho nos problemas
que esses garotos causam a si próprios porque seria manipular resultados... Nós
estamos cientes dos interesses da Equipe Rocket e sabemos que eles sabem disso.
Nesse jogo de xadrez, estamos todos protegendo nosso rei. Os peões andam pelo
tabuleiro e acabam sendo descartados, mas, faz parte... Afinal, existe algo
maior por trás, não é? A Equipe Rocket quer a PokéBola GS por um motivo. Eles
estão ficando desesperados... Logo, não demorará muito para que eles dêem as
caras novamente. Estaremos preparados.
— Mas
lembre-se que no fim do jogo, o rei e o peão voltam para a mesma caixa.
— Estou
ciente disso.
Os dois
homens se encararam sem piscar. Lance continuava a sustentar um sorrisinho
debochado que confrontava a seriedade inabalável do Observador.
— E com
quem está a PokéBola GS?
— A
verdadeira? Com guardiões de minha confiança.
— Quem são?
—
Treinadores, eu acho.
O detetive
avançou contra Lance agarrando-o pelo colarinho e aproximou o rosto do ruivo do
seu. Lance podia sentir a respiração pesada e ver a têmpora destacada do homem
que estava visivelmente irritado.
— Não estou
para brincadeiras, senhor Lance! O senhor está colocando a segurança da região inteira
em risco com essas suas atitudes infantis!
— Não estou
brincando. Está tudo sob controle. Me agredir vai continuar te fazer ficar sem
respostas.
O detetive
afrouxou os dedos e o colarinho de Lance se soltou.
— Bem
melhor.
O
Observador se afastou. Respirando fundo, arrumou seu sobretudo, tentando
alinhá-lo novamente.
— Muito
bem. Estou atento.
***
Amy havia entrado há poucos minutos no quarto onde
Ethan estava. Marieta continuava a se manter firme ao lado da cama do filho e,
ao perceber a entrada da menina, levantou as duas sobrancelhas em uma expressão
surpresa.
— Eu acho uma pena nos conhecermos em um momento
desses... — comentou Amy aproximando-se de Ethan.
Demorou alguns segundos para que Marieta respondesse.
— Tenho certeza de que a culpa não foi sua. Ele sempre
foi um menino teimoso, desde criança. Tá aí uma coisa de família.
O silêncio era quebrado pelos bips do monitor
cardíaco.
— O Ethan costuma falar muito da senhora. Eu sou a...
— Amanda, não é? Fico feliz em saber que você está
cuidando bem do meu filho.
Os olhos de Amy marejaram.
— Eu não estive presente quando fizeram isso com
ele... Me perdoe.
— Não tem o que perdoar minha linda. Já disse que a
culpa não foi sua. Alguma coisa me disse que você assumiria essa
responsabilidade no instante em que você parou naquela porta.
Amy desviou o olhar da mulher para conter o choro.
Dessa vez, fora Marieta quem surpreendeu Amy quando levantou-se da cadeira em
que se encontrava sentada e dirigiu-se até a garota, dando um terno abraço
maternal, um abraço que Amy nunca havia recebido na vida. Toda a força que a
garota estava fazendo para não chorar fora afrouxada com o ato da mulher que a
consolava como sua própria filha — afinal, se ela amava seu filho e se
importava como ela própria, então automaticamente já havia garantido seu lugar
de confiança no coração de Marieta.
As lágrimas escorreram sem que Amy tivesse controle
sobre elas. Naquele instante em que Ethan mantinha uma expressão angelical em
seu rosto parcialmente ocultado pelo ventilador mecânico que simplesmente dava
a impressão de que o garoto apenas estava tirando um cochilo, as duas mulheres
que conheceram-se pessoalmente havia poucos minutos já estavam conectadas pelo
amor que sentiam por ele.
***
POKÉMON P.O.V. (Point Of View)
No mesmo período em que Ethan havia sido internado e
passava por tratamento, Pupitar abandonou completamente seus companheiros de
equipe. Enquanto Quilava, Sandslash e os demais, sob supervisão de Forrest,
faziam um revezamento no Centro Pokémon para proteger seu treinador, o Pokémon
mantinha-se focado em treinamentos rigorosos com uma equipe de Pokémon na Toca
do Dragão, o mesmo lugar onde Ethan havia levado-o para a sauna e trocado-o por
um Feraligatr patife.
Naquele momento, Pupitar sangrava. Cada ferida sua
ardia como milhares de agulhas em chamas que penetravam a dura carapaça que
protegia seu corpo. Os socos levados na cabeça o faziam hesitar nas memórias de
como havia chegado ali. Sua certeza às vezes se misturava com a dúvida.
Suas memórias diziam que ele havia chegado do lado de
fora da Toca do Dragão e acabou desviando da porta maior que levava ao interior
do local onde se encontravam as cabines para sauna. No entanto, sua atenção era
na porta menor, com os dois Machokes fazendo segurança. E foi justamente para
onde o Pokémon se dirigiu.
Um dos seguranças deu uma cotovelada no companheiro,
alertando-o sobre a aproximação do Pokémon.
— Aonde você vai, baixinho? — questionou um.
— Fiquei sabendo que tem uma sala de treinamentos aí.
Quero me juntar — respondeu o Pupitar de forma séria.
Os dois Pokémon se encararam com uma risadinha.
— E por que você acha que a gente deixaria você entrar
para treinar com os outros?
— Eu não sei, foi por isso que eu pedi.
— Hahaha, você é uma comédia — comentou um dos
Machoke dando risada.
— O único local para o qual você pode ir é na sauna.
Vai relaxar, tampinha — respondeu o segundo Machoke.
Os dois Pokémon retornaram à posição intimidadora e
não esconderam o sorriso debochado.
Três segundos foi o tempo necessário para que os dois
grandalhões fossem arremessados pela porta de aço de uma vez só. Sendo do tipo
Lutador, os dois seguranças eram resistentes a golpes do tipo Pedra, mas foram
pegos desprevenidos com o golpe de Pupitar. Talvez pelo fato da porta não estar
trancada, mas ambos os Pokémon foram empurrados pela rajada de areia para dentro
da sala, destruindo a dobradiça da porta, o que assustou os Pokémon que estavam
no interior do local. Imediatamente, diversos outros Pokémon imensos começaram
a correr em direção à porta para checar o que estava acontecendo. A nuvem de
areia invadia o local e diminuía a visibilidade de todos ali. Um sentimento de
pânico tomou conta dos Pokémon que estavam lá dentro.
Pupitar manteve-se escondido dentro da tempestade de
areia enquanto entrava no local, o que impedia qualquer Pokémon que fazia
segurança se aproximar. Uma chuva torrencial, no entanto, começou a limpar a
areia do local, desfazendo a camuflagem do Pokémon. A chuva caía dentro da
sala, era estranhamente produzida ali naquele local.
— Pode cessar Gilbert — pediu uma voz feminina de
forma austera.
Pupitar estava parado, completamente ensopado, com um
sorriso travesso no canto da boca.
— Acredito que um jovem como você deve ter um
excelente motivo para destruir nossa sala de treinamento.
A dona daquela voz finalmente se revelou. Uma
guerreira dracônica com curvas acentuadas de seu belo corpo encarava
severamente o Pupitar rebelde. Seus cabelos azulados sequer se moviam, parecia
que a Dragonair tinha o poder de controlar o vento ao redor de si, ou este a
temia o suficiente para que não se aproximasse. Ao seu lado, Gilbert, um
Gyarados enorme, com cara de poucos amigos, ainda mantinha sua cauda erguida. Foi
dele que o Rain Dance veio e ele
estava preparado para proteger sua equipe de qualquer ataque que pudesse vir de
Pupitar.
Os dois Machoke ergueram-se e prontamente
prepararam-se para atacar Pupitar, mas foram impedidos pelo simples olhar de
Dragonair.
— Não se preocupem. O dever de vocês é proteger a
entrada. Se ele conseguiu passar por vocês, agora, o problema é meu.
Os dois Pokémon se entreolharam nervosos, mas acataram
a ordem superior. A sala já estava uma bagunça e havia lama para todos os lados
devido à soma da areia do Sandstorm
com a água do Rain Dance. Todo o chão
de madeira daquele dojô, outrora limpo, estava encardido, sem falar nos tatamis
todos revirados, jogados para todos os lados, e nenhum dos Pokémon que
frequentavam o local pareciam satisfeitos em ver aquela bagunça. Haviam
diversos tipos de Pokémon, como Magikarps e Dratinis, que claramente eram
alunos. Pupitar chegou a essa conclusão visto que claramente aqueles Pokémon
eram de baixo nível se comparados aos outros gigantes que, se não fossem
seguranças, eram com certeza professores.
A Dragonair aproximou-se do Pokémon.
— Por que veio aqui?
— Eu quero ser treinado aqui.
— E você acha que destruir nosso dojô vai fazer você
ser treinado como?
Pupitar não afrouxava seu
sorriso.
— Eu precisava de uma... Entrada triunfal.
A Dragonair olhou Pupitar de cima a baixo e não se
deixou abalar pelo olhar soberbo daquele Pokémon. Em seus longos anos de
treinamento, ela já havia visto diversos casos semelhantes. A decisão já estava
tomada antes mesmo de existir qualquer pergunta.
— Você é indigno de treinar na Caverna do Dragão.
Pela primeira vez, o rosto de Pupitar estremeceu.
— Acredito que a senhora seja a mestra deste local.
Por favor, me treine e me permita estar entre seus discípulos.
— Você não merece estar entre nós. Você não é um de
nós — respondeu Dragonair de forma firme.
Pupitar soltou uma risadinha e logo apontou para um
dos Pokémon na sala — Magikarp.
— Com todo respeito, mestra, mas a senhora está me
dizendo que eu, no nível que estou, não sou digno de treinar com dragões, mas
esses peixes fracotes são?
Pupitar se contorceu de dor quando Dragonair o atingiu
no rosto usando um poderoso Aqua Tail
com sua cauda. O Pokémon voou e atingiu com violência uma das paredes do dojô,
deixando um relevo perfeito da estrutura de seu corpo.
— Nunca mais se refira dessa maneira aos kouhais deste dojô. Você nunca poderá se
comparar a eles, porque eles têm alma pura. Você precisa caminhar bastante para
colocar sua mente no lugar antes de querer ser chamado de kouhai também.
Dragonair encarava Pupitar sem mudar sua expressão de
desprezo. O Pokémon, no entanto, não se deu por vencido.
— Justamente por isso que eu vim. Não posso liberar
todo meu potencial sozinho.
— E é por isso que todo Pokémon deve ser treinado.
Onde está seu treinador? — uma terceira voz se sobressaiu no dojô.
Kingdra aproximou-se dos dois de forma vagarosa, como
se estudasse Pupitar. Dragonair ergueu o cenho.
— Sensei, eu posso cuidar dele.
— Minha decisão já está tomada, Draco. Ele não é
bem-vindo em nosso dojô — respondeu Dragonair ao Kingdra.
Apesar de manter-se em silêncio por alguns segundos,
Pupitar respondeu ao Kingdra.
— Meu treinador acredita que eu sou uma peça
descartável do time dele.
O Kingdra deu um sorrisinho.
— Analisando os últimos dez minutos, eu não diria que
ele está tão errado.
Dragonair o repreendeu com um olhar assustador. Draco,
porém, pareceu não se intimidar.
— Sensei, o que está escrito na parede? — Draco
questionou apontando para um quadro branco preenchido com kanjis.
— Hitotsu,
jinkaku kansei ni tsutomuro koto — respondeu Dragonair sem precisar olhar,
mencionando aquelas palavras decoradas de forma tão natural como se tivessem
simplesmente questionado por seu nome.
— “Primeiramente, esforçar-se para a formação do
caráter” — concordou Draco, traduzindo o japonês. É o que esse cara aí não tem,
caráter. Prossiga, sensei.
— Hitotsu,
inkaku kansei ni tsutomuru koto — citou Dragonair novamente.
— “Respeito acima de tudo”. Outra coisa que falta
nele.
— Já entendi. Aplicar o dojokun para que esse Pokémonzinho possa pelo menos se tornar uma
criatura decente... — suspirou Dragonair. — Certo Draco. Você será o senpai dele. Ele é sua responsabilidade.
— Arigatou, Nadia-sensei.
— Draco curvou-se perante Dragonair demonstrando o profundo respeito que tinha
pela mestra.
Nadia se virou para se retirar do dojô.
— Arrume essa bagunça — ordenou a mulher para Pupitar.
O sorriso de Pupitar voltou a ser exibido no canto de
sua boca.
— Hehe... Ria enquanto pode, novato. Eu vou fazer
questão de fazer você perder cada um dessas suas presas... — ameaçou Draco. —
Você vai implorar para ter sido treinado pelo seu mestre humano.
E com o treinamento rígido, Draco realmente cumpria o
que havia prometido. Pupitar continuava sentado sentindo fortes dores pelo corpo
enquanto agora voltava a ter a noção do que estava fazendo ali.
— Você está descansando, seu bosta? Eu não lembro de
ter autorizado. Você é um fraco mesmo... — a voz de Draco demonstrava prazer em
provocar Pupitar, que não respondia. — Vamos retomar o treinamento.
O Pokémon ergueu-se com dificuldades. O Kingdra não o
esperou se preparar.
— Hydro Pump!
— exclamou Draco antes de disparar um canhão poderoso de água no peito de
Pupitar.
***
Kurt já havia pausado as
atividades com a fabricação das PokéBolas, afinal, o horário de seu almoço era
sagrado. Até sua neta, Maizie, já sabia disso há anos e, quando terminava suas
tarefas próximo daquele horário, era a primeira a sair da oficina de seu avô
para almoçar em sua casa. O velho fabricante morava sozinho. Sua única
companhia era um Slowpoke que as más línguas em Azalea diziam que era tão idoso
quando o próprio Kurt, que não fazia nada. Ele adorava ficar observando seu
velho mestre trabalhar, mesmo que de vez em quando Maizie tivesse que checar se
os batimentos cardíacos do Pokémon estavam regulados.
Naquele dia, porém, Kurt
sentia que algo diferente estava no ar. O vento soprava de uma maneira única, a
noroeste, o que era incomum, afinal, os ventos sempre sopravam a nordeste. Havia uma lenda que dizia que Celebi,
guardião da floresta que invadia os domínios do município, tinha o poder de
viajar no tempo. E quando isso acontecia, era como se as coisas levemente
ficassem incomuns. O vento poderia soprar em outra direção, a água dos riachos dava
a impressão de correr um pouco mais rápido e até mesmo os Slowpokes selvagens
sagrados de Azalea ficavam mais agitados, por incrível que pareça. Claro que,
para um simples turista, os sinais eram quase imperceptíveis. Mas não para
Kurt, que havia nascido ali e vivia naquela cidade há quase setenta anos. O
velho ferreiro sabia ler como ninguém os detalhes que a natureza imprimia e
envolvia naquela cidade isolada.
Três batidas na porta
interromperam o raciocínio do idoso. Ele já havia decidido não abrir a porta. O
mais estranho é que praticamente todos os cidadãos de Azalea sabiam do horário
de funcionamento de Kurt. E sabia que aquele homem era metódico, não atendia
fora do horário, principalmente se isso fosse interromper seu almoço.
Mais três batidas na porta, dessa
vez com mais força. Que dia louco. Kurt fechou o punho e começou a mastigar
mais devagar a mistura de yakisoba e shoyu. Sua têmpora já começava a ficar
evidente em sua testa e seus olhos, fechados, o faziam concentrar em maldições
para jogar em quem quer que estivesse ali.
Outras três batidas na
porta, emergenciais. Kurt levantou de sua mesa e, pisando forte, foi até a
porta, abrindo-o de forma ignorante.
— Estou em horário de
almoço! — bradou antes de tentar fechar a porta novamente.
Bugsy no entanto o impediu.
— Senhor Kurt, eu não viria
aqui se não fosse urgente. Preciso de ajuda.
Kurt continuou irredutível.
— Eu quero terminar meu
almoço!
— Mas é sobre o Celebi! —
exclamou num sussurro o Líder de Ginásio da cidade, como se fosse um tabu a ser
dito em voz alta.
Kurt arregalou os olhos e
voltou a encarar Bugsy. Percebeu que ele não estava sozinho, quatro pessoas do
vilarejo estavam com ele. Duas delas, carregavam dois Pokémon que Kurt logo
reconheceu, era um Pikachu e um Eevee. As outras duas, carregavam duas
crianças, um menino e uma menina, cada um em suas costas.
— O que está acontecendo
aqui? — questionou Kurt de forma cautelosa.
— Encontramos eles próximos
do santuário do guardião, desacordados. E veja isso... — Bugsy retirou do bolso
uma linda flor. Ela uma tulipa, cujo caule era tão verde como se estivesse
acabado de nascer. As cores das pétalas eram em um tom violeta vívido e seu
aroma natural encantaria qualquer um que passasse por ali, o que não mudou a
expressão urgente de todos os presentes. — Tulipas. Havia tulipas exatamente no
lugar em que os encontramos. O senhor sabe que...
— Viagem no tempo... Eles
foram trazidos... Por Celebi — completou Kurt, entendendo a gravidade da
situação. — Entrem, vamos!
O grupo adentrou na casa de Kurt e a porta, diferente
da ignorância que fora aberta, fechou-se com a maior cautela desta vez.
TO BE CONTINUED...
Capítulo 57
POKÉMON
P.O.V. (Point Of View)
— Vocês têm
certeza de que essa é a coisa certa a se fazer, né? — questionava Wobbuffet
enquanto via seu treinador afastar-se cada vez mais.
— É
necessário sim. Sei que é dolorido pra nós, mas precisamos fazer isso —
respondeu Quilava.
— Aceitem
que nosso mestre só quer saber da namorada e pronto. Nós apenas somos um empecilho
na vida amorosa dele e vocês sabem disso. — Pupitar permanecia de costas, sem
fazer qualquer tipo de contato visual com seus companheiros.
Ainda
chovia. Cada gota de chuva caía com violência no chão, como se quisesse
transpassar o calcário que formava o asfalto pelo qual aquelas criaturas
caminhavam, e representasse a tristeza furiosa dos corações daqueles Pokémon,
que viam seu agora ex-treinador se afastar para longe deles. Um turbilhão de
pensamentos passava pela mente de cada um deles que não sabiam o que fariam
dali em diante.
Foi
Sandslash quem quebrou o silêncio.
— Eu não
acho que a mestra Amy concorde com isso... E ainda acredito que ao notar o que
o mestre Ethan fez, ela com certeza será uma das responsáveis por fazê-lo vir
atrás de nós.
Wobbuffet
concordou balançando a cabeça. Pupitar, no entanto, continuava irredutível.
— Vir atrás
de nós... Vocês ainda têm coragem de pensar em voltar a serem treinados por
ele? Onde vocês enfiaram o orgulho de vocês? Amigos, ou estamos juntos e
crescemos juntos ou nós iremos parar no fundo do poço. E é para onde esse
humano vai nos levar.
Sandslash
aproximou-se do Pokémon.
— Se nós
chegamos até aqui, foi porque nós estivemos juntos e crescemos juntos. Mas não
foi sozinho, foi com o mestre Ethan. Apesar de todos os erros dele, nós nunca
viramos as costas.
— Mas ele
virou as costas pra nós. Quando eu mudei de forma, ele não pareceu ligar. Eu não queria ter evoluído, eu não me sinto
confortável nesse corpo, entende? Eu me sinto preso, eu estou preso, Sandslash. E quando eu mais precisei do mestre a quem
eu dediquei a minha vida, eu fui completamente ignorado por causa de uma
humana... Você sabe o quanto isso doeu?
— Quando o
mestre Forrest abandonou seus Pokémon, eles juraram lealdade e foram atrás dele
— relembrou Wobbuffet.
— Mas o
mestre Forrest pensou que não era digno de treinar Rocky e os outros, é uma
situação completamente diferente. — Pupitar encarava seus companheiros
esforçando-se para fazê-los entender seu ponto de vista. — Eu não acredito que
nosso treinador goste da gente.
A equipe de
Pokémon se entreolhou.
— E o que
você sugere fazer? — perguntou Quilava.
— Vamos nos
tornar mais fortes. Sozinhos — respondeu Pupitar.
Nidorino
falou pela primeira vez.
— Estou de
acordo. Apesar de que eu ainda acredito que o mestre possa vir a se redimir
conosco.
— Eu não
sei o que dizer, pessoal... Eu só quero participar de uma boa batalha assim que
possível. — Magneton não parecia se incomodar nem com a chuva, nem com a
situação.
—
Precisamos nos manter juntos. E o nosso dever é ser leal ao nosso mestre, é pra
isso que nascemos nesse planeta. — Sandslash olhava cada amigo no olho, falando
de forma firme.
— E quando
a lealdade não se mostra recíproca? Devemos seguir até o final do abismo e
esperarmos ser jogados de lá? — Perguntou Pupitar de forma séria.
— Somos
Pokémon, não é? Temos poderes que devemos usar para nos proteger em último caso
— respondeu Sandslash.
Parece que
pela primeira vez naquela discussão, todo o grupo concordava.
***
— Meu
filho, você é um idiota! — Aquelas palavras ecoaram pelo corredor. Ethan sentia
suas orelhas arderem, queimarem como se estivessem pegando fogo. — Como assim
você abandonou seus Pokémon? Moleque, eu não te criei pra ser um frouxo!
A voz
zangada de dona Marieta falava havia dez minutos ininterruptos pelo telefone. Ethan apenas encolhia os ombros enquanto ouvia
o sermão, sem chance de dar resposta. Quando sua mãe parou para respirar, o
garoto achou uma brecha para se defender.
— Eu só não
quero ser um treinador fracassado, mamãe.
Marieta
friccionava de forma circular a ponte do nariz com o dedo indicador e polegar
enquanto era possível ver uma veia pulsando em sua têmpora. Ela deu um suspiro
profundo e virou para a tela, encarando o garoto.
— Meu
filho, você não nasceu pra ser fracassado. Você pode ser o que você quiser,
você sempre terá o meu apoio. Mas, sempre se preocupe em fazer as coisas
direito. Não foi pra isso que você saiu de casa, e não foi pra isso que eu
deixei você sair de casa. Se você quiser voltar pro colo da mamãe, não vai ter
problema nenhum, mas lembre-se de fazer isso com consciência, com plena
convicção. Abandonar seus Pokémon não é a melhor maneira de fazer isso e eu só
não te dou uma surra porque Blackthorn ainda fica a alguns quilômetros de New
Bark. Dê um jeito de pedir perdão aos melhores amigos que você tem e nunca
mais, e repito, NUNCA MAIS faça uma burrada dessas de novo, você tá me
entendendo? Não vai ter cidade que separe sua bunda do meu chinelo, moleque!
Agora dá licença que o meu jantar está quase pronto. Beijos, te amo. Corrija sua
cagada.
E desligou
o telefone.
Ethan ainda
ficou encarando a tela por alguns instantes antes de suspirar e levantar do
banquinho almofadado onde estava. O garoto então se dirigiu para o lado de fora
do Centro Pokémon e olhou para o céu, coberto de nuvens espessas que ainda
derramavam gotas de chuva em seu rosto. A grossa garoa não impediu que Ethan
caminhasse pelas ruas, mesmo com a ausência de um guarda-chuva. As pessoas que
passavam por ele não pareciam se preocupar com isso, estando mais focadas em chegar
às suas casas quentinhas e descansar de um dia tedioso e feio.
O principal
pensamento do garoto era saber como ele reencontraria seus Pokémon. Ele nunca
havia estado em Blackthorn antes, então, não conhecer a cidade era um fator que
atrapalharia logo de cara. Também não poderia contar com a polícia, afinal,
deveria ter alguma lei no Mundo Pokémon que mencionava ser crime abandonar uma
equipe inteira e ele não gostaria de passar o resto de seus dias dentro de uma
cela fria e suja. Se bem que Forrest também estaria com ele, não é?
Forrest
abandonou seus Pokémon também e não foi crucificado como Ethan está sendo. Como
o mundo é injusto...
A chuva
começou a cair mais forte. Ethan caminhava sem rumo nas ruas da cidade até
ouvir seu nome sendo chamado por uma voz conhecida.
— Ethan!
Que engraçado nos encontrarmos novamente!
E aquele
timbre de voz fez o garoto, inconscientemente, se encolher entre os ombros e
fazer uma careta.
Ao
virar-se, deu de cara com Eusine, com um guarda-chuva, caminhando em sua direção.
O garoto se aliviou ao ver que, ao menos daquela vez, ele não estava seminu — o
que fez o garoto dar um suspiro de alivio.
— E aí,
cara... Tudo bem?
— Eu que te
pergunto. Você sabe que tá chovendo, né?
— Não fazia
a menor ideia... — respondeu Ethan em um tom irônico.
Eusine
pareceu não se importar e deu uma risadinha.
— Tenho um
lugar pra nós. Se importa? — perguntou o homem estendendo o guarda-chuva para
que o garoto pudesse se proteger.
Caminharam
por alguns minutos em silêncio pelas ruas de Blackthorn, até que Eusine guiou
Ethan para uma barraquinha amarela em uma das esquinas que aos poucos diminuía
o fluxo do tráfego de veículos e pedestres. O cheiro de salsicha impregnava o
ar e o vapor até que causava certo conforto no menino, que estava encharcado. O
vendedor entregou dois cachorros-quentes para Eusine, que estendeu um para
Ethan, que ergueu a sobrancelha de forma surpresa.
— Pega.
Você deve estar com fome.
— Eu não
trouxe dinheiro...
— Já
paguei, relaxa.
— Como eu
vou poder pagar você depois?
— Melhor
comer antes que esfrie.
Ethan
encarou Eusine por alguns segundos antes de finalmente ceder. Discutir com o
rapaz era claramente lutar uma guerra em que sairia derrotado.
Os dois
caminharam até a proteção de um toldo que fazia fachada de uma das lojas
próximas e sentaram-se no chão. Calados, os dois terminaram de degustar o
lanche e soltaram um suspiro de satisfação. Foi Eusine quem puxou assunto.
— Então, de
barriga cheia, eu posso te perguntar: Por que você tava andando por aí na
chuva? Deve ter sido alguma coisa bem complicada pra tirar você do sério assim.
Ethan
encarou Eusine com curiosidade. Era estranho o homem querer saber sobre o que
estava acontecendo na vida do garoto, afinal, eles mal se conheciam.
— Olha,
Eusine... Sem querer ofender ou ser grosseiro, mas por que você se importa?
— Você me
lembra muito um amigo meu. O jeito de andar, a franja despenteada... Mas
principalmente seu boné, do mesmo modelo e marca que ele utilizava quando
viajávamos juntos. Toda vez que eu te vejo, eu me lembro dele.
Houve um
momento de silêncio antes de Ethan retomar a conversa.
— O que
aconteceu com o seu amigo?
— Sabe que
eu não sei? Deve ter morrido. Seria bom.
Ethan
arregalou os olhos.
— Ué! Por
quê?
— Não
desejo o mal dele, mas é porque depois que terminamos nossa jornada Pokémon e
eu passei a pesquisar ainda mais sobre o Suicune, ele desapareceu. Deve ter se
mudado pra outra região do mundo, feito jornada lá. Ele nunca foi do tipo que
aceitou ficar muito tempo parado, tava sempre procurando o que fazer, sempre a
encontrar um novo desafio para se superar. Apesar do temperamento forte dele,
eu sei que ele era uma boa pessoa. Sabe, garoto, sempre que puder, valorize os
amigos que você tem. Quando ninguém estiver presente, tenha certeza que eles
estarão lá.
— Sabe que
você é a segunda pessoa a falar de amizade comigo hoje?
— Que pena,
não gosto de chegar depois.
— Eu acho
que sou um amigo muito ruim.
Eusine deu
um sorrisinho.
— Por que
acha isso?
— Eu
abandonei meus Pokémon, por causa disso meu melhor amigo e minha namorada me
odeiam.
— Por que
você abandonou seus Pokémon?
— Porque eu
sou um péssimo treinador. Eu mal consegui controlá-los na minha última batalha
de Ginásio! Eu devia era nunca ter saído de casa.
— Voltar
pra casa vai te fazer corrigir seus erros e se tornar uma pessoa, amigo,
treinador e namorado melhor?
— Não. Por
isso eu ia pra casa, assim eu me escondia debaixo da cama pra sempre.
— Fugir dos
seus problemas não vai resolver nada. Eles ainda vão existir, e você vai
continuar sendo fraco.
— Obrigado
pelo apoio — disse o garoto com ironia.
— Ficar
bravo não vai resolver nada também. Você sabe que eu tenho razão.
Ethan
suspirou.
— Eu
gostaria de dizer que você está errado...
—Sabe de
uma coisa? Nós até que somos bem parecidos.
O garoto
arregalou os olhos.
— Somos?
Por quê?
— Porque
nós dois, quando colocamos algo na cabeça, não tiramos de jeito nenhum. Eu,
desde criança, sempre fui apaixonado pelo Suicune. Desde então, passei a
acreditar que um dia irei capturá-lo e treiná-lo, ele será só meu. A lenda desta
criatura não é fascinante por si só? Três Pokémon que morreram dentro da Torre
Queimada, sendo ressuscitados pelo benevolente Ho-Oh, o grandioso pássaro dos
céus, e que agora despertos com certeza estão à procura de um mestre que possa
treiná-los e torná-los mais fortes, enquanto aguardam o retorno da criatura que
os criou para que pudessem banir todo o mal do planeta. Você deve imaginar que
todos aqueles que eu um dia conheci duvidaram deste meu sonho, não é?
Ethan riu.
— Admito
que eu também sou bastante cético quanto a isso. Poxa vida, é um Pokémon
Lendário! Nas vezes que o encontramos, você não pensou duas vezes em querer
passar por cima de nós só para poder ter uma chance de batalhar contra ele!
— Exato
garoto. Não leve para o lado pessoal, mas não é só você. Eu passaria por cima
do mundo, se pudesse, só para conseguir capturar esse Pokémon. Suicune é meu
sonho de vida, e eu, apesar de reconhecer certos exageros nesses longos vinte e
cinco anos que o persigo não me arrependo nem um dia sequer de ter lutado para
que isso pudesse se concretizar.
O garoto
permaneceu em silêncio por alguns instantes, refletindo sobre o que Eusine
estava dizendo. Apesar de Ethan o achar um completo lunático, ele até que era
inteligente.
— Posso te
fazer uma pergunta? — Eusine questionou a Ethan.
— Pode.
— Você
disse que abandonou seus Pokémon porque você não conseguiu vencer sua batalha
no Ginásio... Sua equipe por acaso tem alguma culpa nisso ou a responsabilidade
por não ter preparado seus companheiros da forma devida é toda e exclusivamente
sua?
— Não
necessariamente... Mas eu ouvi hoje na sauna que existe um certo tipo de
treinamento Pokémon em Hoenn que o treinador abandona seu Pokémon quando ele
perde. Eu acho que me levei pela frustração e acabei fazendo igual...
— O método
Nuzlocke é a coisa mais ridícula que eu já ouvi na minha vida.
Ethan
encarou Eusine como se tivesse levado um soco.
— Você
conhece?
— Claro que
sim! Eu tenho contatos na Liga Pokémon, garoto. Eu acho que quem segue o Método
Nuzlocke é um fraco. Você ter que abandonar seu Pokémon por que ele perdeu uma
vez? Isso é ridículo! Eu acredito que quando se perde uma batalha, não se perde
a guerra. Você e sua equipe devem se fortalecer para que se possa vencer na
revanche. Perder não é ruim, ruim é agir como um derrotado.
Ethan
encarou a palma das próprias mãos antes de se levantar bruscamente e sair
correndo. Eusine permaneceu sentado com seu sorrisinho de canto de boca.
— Esse
garoto ainda vai pegar uma gripe se continuar insistindo em sair sem
guarda-chuva...
***
As ruas da
cidade de Blackthorn ficavam cada vez mais desertas. A cada passo que o garoto
dava em direção ao Ginásio, ele olhava para os lados, procurando qualquer sinal
visual de seus Pokémon, mas não havia um qualquer. O garoto arfava de cansaço, arqueou-se
e repousou as mãos nos joelhos, enquanto sentia o suor escorrer pelo rosto e um
calor invadir o interior de seu corpo. O clima úmido e frio que fazia na cidade
até tentava aliviar a temperatura que o garoto sentia, mas a adrenalina não o
permitia descansar. Ele ergueu-se e olhou para os lados mais uma vez, mas
nenhum de seus Pokémon parecia estar próximo. Ouviu passos correndo em sua
direção e deparou-se com jovens treinadores que mantinham na face um sorriso de
satisfação. Enquanto Ethan recuperava o fôlego, não pôde deixar de ouvir a
conversa que aqueles treinadores mantinham entre si de forma apressada.
— Cara,
esses Pokémon selvagens da Rota 45... De onde será que eles surgiram?
— Nem sei,
cara, mas se os boatos estiverem corretos, eles estão lá. Tem até Quilava!
Nossa, imagina um Typhlosion no meu time? Eu vou arrasar na Liga Pokémon!
Ethan
arregalou os olhos.
— Não pode
ser...
E lutando
contra a exaustão, o garoto correu tentando alcançar os dois treinadores que
passaram por ele há poucos instantes.
***
A Rota 45
não se diferenciava muito da paisagem montanhosa que era predominante naquela
parte da região de Johto. Ela era construída por entre uma cordilheira que
separava o norte da região do sul, onde cidades costeiras como New Bark e
Cherrygrove foram construídas e que eram destinos inevitáveis para os viajantes
que prosseguiam por ela, afinal, o caminho em declive era o último passo para
onde os treinadores Pokémon costumavam passar antes da Liga Pokémon, que
acontecia no continente vizinho, Kanto.
Por outro
lado, havia a entrada para a Caverna Escura, um caminho por dentro da montanha que
levava à Violet em meio a encontros com Pokémon raros. Àquela hora da noite
tais caminhos costumavam estar tranquilos, mas naquele dia em específico o
movimento era grande. Treinadores e Pokémon vasculhavam cada canto da rota à
procura de raríssimas criaturas que de uma hora para outra, apareceram nas
redondezas. As águas do rio que fluíam da cidade de Blackthorn às margens dos
caminhos sinuosos eram a única fonte sonora naquela área. O silêncio era total
para que fossem localizados os Pokémon que os últimos boatos diziam que podiam
ser encontrados ali.
—
Encontrei! — exclamou um dos treinadores, apontando para Quilava, que tentava
se esconder por entre a vegetação.
O grupo
correu para onde o garoto apontava. O Pokémon de fogo fora acuado com os
humanos em volta, sem ter para onde correr. Acendeu as chamas em suas costas
como forma de ameaça, mas não pareceu assustar os treinadores. Um ThunderShock rasgou o céu, chamando a
atenção de todos.
Faísca se
aproximava lentamente. Apesar de sua expressão sempre se manter a mesma, com
seus três olhos encarando os oponentes sem demonstrar qualquer tipo de emoção, correntes
elétricas faiscavam dos imãs nos extremos de seu corpo — ele estava furioso.
Sand, Wobbuffet e Imperador o acompanhavam caminhando em posição de ataque,
prontos para defender Quilava de qualquer tentativa de ataque.
Um dos
treinadores, porém, não pareceu temê-los.
— Aí
galera, se combinar certinho, todo mundo aqui hoje vai descolar um Pokémon
maneirão pra equipe... — sorriu maliciosamente, sacando uma PokéBola do bolso.
Em um
piscar de olhos, uma dezena de Pokémon atacavam por todos os lados. Quilava e
seus companheiros tentavam se defender da maneira que conseguiam, um tentando
cobrir as desvantagens do outro. Os Pokémon disparavam seus golpes e se
preocupavam apenas em não atingir uns aos outros em fogo amigo. Apesar da
desvantagem numérica, os oponentes iam recebendo danos consideráveis em seus
corpos, para angústia e raiva de seus treinadores.
— Granbull,
faça picadinho desses imbecis! — bradou um dos treinadores.
— PAREM!!!
— berrou a voz de Ethan.
Por alguns
segundos, o tempo parou. Ao se virarem, os treinadores e seus Pokémon
depararam-se com o garoto quase desmaiando e arfando de cansaço.
— Esses...
São... Os meus... Pokémon!
— Aí
otário, se quiser capturar eles, você vai ter que auxiliar na batalha como todo
mundo, sacou? — comentou uma treinadora.
Ethan
reuniu todo fôlego que ainda tinha e tentou ignorar a forte pontada que sentiu
na região do diafragma e correu na direção da vegetação onde a aglomeração
permanecia. Furou o bloqueio humano e parou de costas para Quilava, de frente
para os treinadores, abrindo os braços para protegê-lo.
—
Ninguém... Chega... Perto... — murmurava o garoto.
— Aí,
maluco, o que você tá pensando? — um dos garotos vociferou de forma ameaçadora
para Ethan. — Você quer morrer?
Quilava e
os outros Pokémon da equipe encaravam Ethan incrédulos. Aquele garoto humano,
poucas horas atrás, havia dispensado-os. Agora, estava ali, defendendo-os de
outros treinadores que queriam capturá-los.
— Ei, eu te
conheço! Você não é aquele moleque do Lago dos Magikarp? Você apareceu na TV! —
exclamou uma das treinadoras.
— Pode
crer! Você tava na treta contra os Rockets junto com a Elite 4 também, em
Mahogany, semana passada! — lembrou outro garoto.
— Agora
tudo faz sentido... Esses Pokémon são seus!
Ethan confirmou
com a cabeça.
— Você
abandonou eles? — Os questionamentos continuavam.
— Eu cometi
um erro. Eu joguei nas costas deles uma responsabilidade que era só minha —
respondeu o garoto de forma firme.
Um dos
garotos aproximou-se de Ethan e cospiu em seu rosto.
— Você é um
treinador repugnante! Seus Pokémon merecem coisa melhor do que um lixo como
você, conosco com certeza eles serão devidamente treinados como merecem.
Ethan
passou o antebraço direito no local da cospida e deu um sorriso sádico.
— Só por
cima do meu cadáver.
O garoto
socou o treinador com toda força que conseguiu reunir. Logo, os demais partiram
para cima e se juntaram à pancadaria. Ethan era um só e começou a apanhar
daquela dúzia de outros treinadores que o espancavam cheios de raiva, um deles
o socou e o derrubou no chão na medida que outros dois começaram a chutá-lo nas
costelas e suas partes baixas. A briga então se estendeu para os Pokémon que
trocavam golpes entre si, uma confusão generalizada tomava conta da Rota 45.
Quilava
correu para tentar defender seu
treinador, mas os demais Pokémon fizeram um cerco contra e o impediram de
continuar. Sandslash tentou furar o bloqueio e acabou sendo agredido por um
Hitmontop. Magneton tentou paralisá-los até que se acalmassem, mas a presença
de um Donphan dificultava a situação.
Os
arruaceiros que se declaravam como treinadores só pararam a investida quando
puderam ouvir a sirene da polícia ressonar cada vez mais próxima. Eles pararam
de agredir Ethan, largando-o sangrando e quase inconsciente no chão para
desaparecerem dali antes que as autoridades chegassem e começassem a fazer
perguntas com risco de os abdicar de seus títulos como treinadores.
— Isso
ainda não acabou, seu bosta. A gente vai se ver de novo — disse um dos rapazes
antes de chutar com força a cabeça do garoto, desmaiando-o em definitivo.
TO BE CONTINUED...