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Capítulo 62
Em sua imensa sala no topo
do Planalto Índigo, Lance permanecia reflexivo enquanto mantinha o PokéGear à
sua frente, na mesa do escritório. No vídeo, não era possível obter a definição
do rosto do interlocutor, havia pouca luz — talvez ele, ou ela, estivesse
escondido.
— Me preocupa não ter
notícias dos Rockets. Nós os encurralamos e eles deixaram de ser tão
extravagantes... Você sabe muito bem que
dessa vez eles estão nas sombras, mas agora não temos nenhum rastro. Estou com
medo, Amy...
— Quando Red derrotou o
Giovanni há três anos, a primeira ordem foi nos esconder para conseguirmos nos
estabilizar novamente e reerguer a organização. No entanto, dessa vez, a Equipe Rocket tem o
poder de controlar Pokémon via ondas de rádio, capturaram Lugia nas Ilhas dos
Redemoinhos e possuem uma vontade imensa de se vingar por ter sido atrapalhada
duas vezes. Eu acho que, seja lá quais forem os novos planos, eles atacarão com
tudo e não perdoarão ninguém — respondeu Amy. — A PokéBola GS é de fundamental
importância pra organização.
— Eu não os julgo. O Mundo
Pokémon acaba sendo uma coisa fantástica... Controlar o poder dos Pokémon para alterar
os eventos dentro de uma linha do tempo. Tentador.
Lance olhou de relance para
a enorme janela com vista panorâmica. O brilho do sol começava a ser encoberto
por uma espessa camada de nuvens negras que espalhavam-se com certa velocidade
pelo outrora céu azul do Planalto Índigo. A breve distração do ruivo chamou a
atenção da menina.
— O que você mudaria no seu
passado, Lance?
O clarão do relâmpago iluminou
a sala e o som do trovão se fez possível de ouvir pelos pequenos alto-falantes
do PokéGear de Amy. Lance olhou para a garota na pequena tela e deu uma risadinha
antes de responder.
— Minha vida é perfeita.
Não tem nada que eu faria de diferente.
— Se você diz...
— Mantenha-me informado caso
veja qualquer coisa incomum aí em Ecruteak.
— Lance, essa é uma cidade
majoritariamente japonesa. Os moradores comem peixe cru. Isso é incomum demais
pra mim.
Dando uma risada alta,
Lance encerrou a ligação. A pergunta de Amy ainda ecoava pela sua cabeça. O
Campeão da Liga Pokémon abriu a gaveta que se encontrava debaixo de sua mesa e
em um fundo falso, pegou uma caixinha azul pequena e a abriu. Permitiu-se
admirar o que havia dentro dela, um anel em formato de Dratini que estava há
gerações em sua família. Se permitiu acessar as memórias que vez em quando
costumavam invadir sua mente em momentos de distração.
***
Finalmente aquele dia havia
chegado, o dia em que a Cidade de Blackthorn conheceria o maior domador de
Dragões de sua história, o responsável por toda uma nova geração de Dragon
Tamers. Sempre que o Dragon Master alcançava a idade de 70 anos, havia uma nova
cerimônia onde o próximo Mestre carregaria o legado do treinamento das técnicas
secretas lendárias e milenares. Desta vez, no entanto, os candidatos dividiam
opiniões, afinal, se tratavam de Lance e Clair, os dois netos do Dragon Master
atual e prodígios da técnica dracônica desenvolvida no seio da Caverna do
Dragão.
Os primos se encontravam no
interior de uma caverna. Metros à frente, encontrava-se a saída da montanha
onde os moradores da cidade e os Dragon Tamers da Toca do Dragão aguardavam
ansiosos a apresentação dos dois, a cerimônia que seria realizada em uma grande
tribuna de madeira. Clair estava confiante. Ela sabia que era a mais apta a
receber a responsabilidade de se tornar a nova Dragon Master e passar toda a
sabedoria do clã para as futuras gerações. O orgulho de pertencer àquele lugar
emanava de cada poro de seu corpo. Seus vasos sanguíneos dilatavam na medida em
que o sangue fluía cada vez mais rápido devido à expectativa que sentia. Não
gostava de esperar, pra ela era tudo muito simples, dinâmico. Seu primo, por
outro lado, parecia tranquilo até demais, alheio às preocupações e da devida
importância que aquele evento emanava. Claro que aquilo tirava Clair do sério,
como sempre, Lance tinha essa mania de não dar a devida atenção às suas
responsabilidades.
— Hoje é o dia em que você pode
se tornar líder de um clã inteiro, ter uma grande responsabilidade nas costas,
o dia em que você espera desde criança. Por que você não parece estar sequer
com medo? — perguntou Clair.
Lance não respondeu.
Continuou a olhar para a saída da caverna com sua expressão tranquila, como se
estivesse apenas esperando uma carona.
— Detesto quando você não
responde o que eu te pergunto.
O ruivo soltou um
sorrisinho.
— Você, como sempre, muito
tensa. Calma, prima. Vamos relaxar e nos divertir, tá bem?
Lance tomou a iniciativa de
caminhar até a saída da caverna. Clair hesitou por um instante.
— Ainda não anunciaram
nossos nomes.
— Detesto quando você
insiste em seguir à risca toda ordem que te dão.
— É por isso que existem
leis. E quem costuma não segui-las, acaba por ir pra prisão.
O ruivo deu uma risadinha.
— Se cadeia desse jeito em
alguma coisa, não tinha mais bandido no mundo.
Clair não soube como
retrucar. Apenas observou seu primo se dirigir à entrada da caverna e, com um
suspiro, o seguiu.
A ovação do público que assistia
ao evento foi gigantesca ao assistirem Lance e Clair subindo a tribuna de
madeira. O Mestre Dragão ao perceber os discípulos aparecendo sem terem sido
anunciados, não escondeu o descontentamento. Sua capa negra esvoaçava ao ser
tocada pelo vento e hipnotizava a platéia. Lance não pareceu se importar, mas
Clair ficou visivelmente constrangida. O idoso, com a cara fechada, virou-se
para falar com o público novamente.
— Como eu ia dizendo, este
é um dia muito importante não só para o Clã dos Dragões, mas também para a
Cidade de Blackthorn, raiz de toda nossa descendência. E hoje, me deixa muito
feliz passar o bastão de Dragon Master adiante, visto que tenho certeza de que
qualquer um dos dois que se tornar o líder de nossa comunidade fará um
excelente trabalho.
O silêncio tomou conta do
local. O público presente ouvia com atenção o
discurso daquele homem que, mesmo com a idade, ainda mantinha status e respeito
perante a sociedade blackthorniana. Clair fazia o possível para esconder a
ansiedade, visto que seu orgulho não permitia que ela demonstrasse sentimentos
em público, mas era claro que Lance fazia isso bem melhor que a prima. Com um
sorriso simpático no rosto, passeava o olhar na platéia e, vez em quando,
arrancava suspiros de algumas meninas ali presentes.
— Lance. Clair. Vocês dois
se demonstraram os mais capacitados de receberem a responsabilidade de
continuar guiando o Clã dos Dragões para os dias futuros, assim que eu partir.
No entanto, apenas um de vocês irá receber o Anel dos Dragões — o homem hesitou
por alguns segundos. — Independente de quem for o escolhido, quero que estejam
cientes da seriedade do papel que vocês irão receber.
O Dragon Master fechou os
olhos. O vento soprou mais forte, fazendo com que sua capa tremulasse como uma
bandeira imponente. Quando voltou a abri-los, sua feição estava mais séria do
que a de costume.
— Eis a minha decisão.
Você, Lance, é o novo Dragon Master do Clã dos Dragões.
Clair não conseguiu
esconder a expressão de desgosto. O público vibrava com a noticia. O idoso
parou na frente de Clair e olhou para cima para poder encarar seu rosto.
— Você é talentosa, mas não
está pronta.
— Mas, Mestre, por que
então me fez vir até aqui passar por essa vergonha? — perguntou a jovem, tentando
conter as lágrimas.
— Você não sabe perder.
Esse é o seu maior ponto fraco — respondeu o velho de forma calma. Aquilo era muito
mais um conselho do que uma bronca.
— “Você não sabe perder. Esse é o seu maior ponto fraco”. Perder... Tch.
As palavras do Mestre
Dragão ditas há tantos anos ainda costumavam ecoar na mente de Clair. A mulher
encarava a lava fumegante que corria impiedosamente debaixo de seu campo de
batalha no Ginásio de Blackthorn.
— Dragon Tamers são
orgulhosos, Clair, assim como as próprias criaturas que costumam treinar. São
munidos de uma força impiedosa... Mas é essa mesma força que os torna tão frágeis.
Achei que você tivesse entendido — comentou o idoso.
— Já faz muito tempo,
Mestre. Eu aprendi que perder faz parte do nosso crescimento — retrucou Clair.
— Bonito discurso, mas
nunca me convence. Você mesma não acredita nisso. Você só se tornará uma
verdadeira Dragon Master quando se libertar desses caprichos.
— “Caprichos”? Logo pra mim
o senhor vem falar sobre caprichos, quando sabemos que é Lance que ficou
conhecido por ser excêntrico. Isso quase me faz rir! — exclamou a mulher de
forma ríspida, dando um soco no vidro temperado inquebrável que dava visão para
a arena.
Um silêncio se propagou. Clair
ofegava de raiva. Relaxou o braço, o que fez sua mão escorregar de volta para o
lado do corpo enquanto tentava fazer sua respiração ficar mais lenta.
— Desculpe, vovô — disse
ela, quase em um sussurro.
— Você tem suas qualidades.
Muitas delas, inclusive, tendem a ser melhores do que as de seu primo. Mas, por
mais excêntrico que Lance possa ser, tem algo nele que você ainda não tem: o
auto-reconhecimento. Ele sabe que ele é excêntrico, ele assume isso e é isso
que o torna um treinador fantástico. Ele não tem medo dos próprios defeitos.
Você, Clair, quer ser perfeita. E o perfeccionismo te impede de colocar pra
fora todo o seu potencial.
Um alarme de relógio foi
ouvido. O Mestre Dragão olhou para o pulso e, no toque de um botão, o
desabilitou.
— Duas e quinze. Vamos
praticar os Ataques Especiais.
Clair curvou-se perante o
idoso e o seguiu rumo a uma das escadas que levavam para o andar inferior, onde
ficava o campo de batalha.
***
O estrondo de um trovão fez
Ethan encolher os ombros e olhar pela quinta vez naquele mesmo minuto para o
céu carregado de nuvens escuras. Ele e Forrest subiam uma das íngremes e
enormes montanhas que cercavam os limites entre Blackthorn e a Rota 45.
— Forrest, isso não é
inteligente... Vai cair um raio na nossa cabeça, eu não sou um para-raios! —
exclamou o menino visivelmente incomodado. — Vamos voltar para o Centro
Pokémon, esperar essa chuva passar pra gente poder seguir com o treinamento.
— Tá com medo do quê, cara?
É só uma garoa — comentou Forrest em tom de provocação dando um sorriso
travesso.
Outro trovão ribombou de
maneira impiedosa. O grito que Ethan soltou foi abafado pela reverberação
daquele anúncio de tempestade que se aproximava com rapidez.
— UMA GAROA? VOCÊ TÁ LOUCO!
EU VOU VOLTAR PRO CENTRO POKÉMON, EU ME RECUSO A MORRER AQUI!
Um raio desceu e acertou uma
árvore retorcida que caiu a poucos metros dali, o estouro não levou mais do que
alguns segundos. Ethan recuou relutante e voltou seu olhar para Forrest que
analisava o ambiente ao redor.
— É, acho que aqui tá bom —
e virou-se para Ethan. — Convoca seus Pokémon, vamos começar o treinamento.
— Onde, aqui? Mano, mas nem
a pau, se você tá querendo se matar, beleza, mas não me leva junto, não!
— Convoca seus Pokémon ou
eu vou passar por cima de você — disse Forrest de maneira séria. — Não vou
falar de novo.
Ethan ergueu as
sobrancelhas, completamente surpreso com aquela atitude. Resolveu seguir as
orientações de Forrest, ao menos para não perder o amigo. O garoto abriu sua
mochila, pegou suas PokéBolas liberou todos os Pokémon de sua equipe, que foram
organizados um ao lado do outro. Quilava, Magneton, Tyranitar, Nidorino,
Quagsire e Sandslash aguardavam as ordens de Ethan, seu treinador, que
aguardava as ordens de Forrest, treinador de Ethan.
— Você não está só prestes
a disputar uma batalha pela sua última insígnia, mas também, está praticamente
a um passo de chegar à Liga Pokémon. Suas estratégias de batalha precisam ser
revistas, cara.
— E como podemos fazer
isso?
— Cada batalha Pokémon não gera
só uma vitória para o treinador. Também é um desenvolvimento para cada Pokémon,
visto que ao derrotar os oponentes, os Pokémon aprimoram seu Ataque, sua
Defesa, a Velocidade, entre outros Status.
— Caraca, e tem isso? —
comentou Ethan impressionado. — E como a gente desenvolve esses aprimoramentos
todos?
Forrest apontou para uma
árvore à esquerda de Ethan. Havia um Pokémon pendurado de ponta cabeça em um
galho, com o auxílio de sua longa cauda que ostentava um grande ferrão redondo
na ponta. Dormia tranquilamente, nem a ameaça de tempestade parecia atrapalhar
o sono daquele Pokémon que tinha o corpo num tom de roxo tão claro que mais
parecia rosa. Sua língua tampava grande parte do seu rosto, afinal, estava para
fora da boca. Suas asas azuis jaziam estendidas em direção ao solo. O garoto
sacou a PokéDex.
— Gligar, um Pokémon Escorpião Voador. Ao ver um oponente, abre suas asas e plana direto para o rosto de seu alvo e se aproveita do susto de sua vítima para injetar veneno. Geralmente se pendura em penhascos — informou o dispositivo.
— Ele não parece um Pokémon
tão perigoso assim — analisou Ethan olhando para a PokéDex. — É até bontinho.
— Meça suas palavras, meu
parceiro. Eu não iria querer tomar uma ferroada venenosa na cara, se fosse você
— alertou Forrest.
Um trovão rugiu mais uma
vez. Tão alto que Ethan e Forrest sentiram o chão tremer de forma leve.
Aquele trovão, sim, foi
capaz de despertar Gligar. O susto fez o Pokémon perder a firmeza no rabo e
cair de cabeça no chão. Desorientado, o Pokémon levantou-se e tentou se
recompor, balançando a cabeça para se livrar da tontura. Percebeu a presença de
Ethan, Forrest e dos outros Pokémon, que o olhavam com certo receio. Gligar se
levantou, esticou as asas e, num impulso rasante, voou na direção de Ethan, que
só não foi atingido porque deu um pulo para o lado, esquivando-se por um triz
do ferrão do Pokémon. A informação na PokéDex, como sempre, estava correta.
— Quagsire, Water Gun! — ordenou Ethan para o
Pokémon que prontamente correu para auxiliar seu treinador.
O Pokémon de Ethan disparou
um poderoso jato de água na direção de Gligar, que desviou veloz voando em
direção ao céu.
— Quagsire é mais lento do
que Gligar, Ethan. A tipagem não é a única coisa que importa em uma batalha —
comentou Forrest para o amigo.
— Droga, o que é que eu vou
fazer? — perguntou o menino.
Gligar disparou na direção
do oponente com velocidade enquanto preparava a cauda. O ferrão na ponta
ameaçadoramente afiado pronto para aplicar um Poison Sting no Pokémon de Ethan.
— Evasiva! — gritou Ethan.
Quagsire se jogou no chão e
sentiu Gligar passar rasante em suas costas. O garoto rapidamente tentou tomar
a frente.
— Water Gun de novo!
O Pokémon de Ethan
levantou-se do chão e aproveitou da oportunidade que Gligar o deu ao se
aproximar de novo para um novo ataque. O jato d’água, desta vez, atingiu seu
oponente em cheio, o que levou ao chão. Ethan voltou a sacar a PokéDex.
— As fraquezas do Gligar
são Água e Gelo... Droga — lamentou Ethan, tentando pensar em alguma
estratégia. — Será que só o Tipo Água do Quagsire dá jeito?
— Você precisa usar todas
as armas que você tem — aconselhou Forrest. — Se você só tem uma... Use-a!
Gligar levantou-se
rapidamente. Esticou as asas e pulou para o lado esquerdo de Quagsire, que o
acompanhava com os olhos. Depois, olhou para o lado direito e foi para as
costas do Pokémon, que o perdeu de vista.
— Atrás de você! — gritou
Ethan para o Pokémon.
Tarde demais. Quando
Quagsire se virou, Gligar já estava a um palmo de distância. Com suas pinças, o
Pokémon provocou um grande arranhão no peito de Quagsire que cambaleou para
trás.
— Aqua Tail! — bradou Ethan.
Quagsire virou-se para
encarar seu oponente que planou para suas costas. De sua cauda, gotículas de
água foram se formando rapidamente e uma aura azul emanou de seu corpo, produzindo
uma torrente de água corrente que cresceu em um piscar de olhos. Como um
chicote, Quagsire atingiu Gligar que foi pego de surpresa com aquele golpe e
não conseguiu pensar em como se defender a tempo, sendo atingido em cheio. O
Pokémon cambaleou e caiu ao chão, tentando levantar-se para continuar a luta. Ethan
abriu rapidamente a mochila e procurou em um bolso lateral o zíper que o
lacrava. Ao abri-lo, pegou uma PokéBola vazia e rapidamente a arremessou em
direção à Gligar.
A PokéBola se balançou três
vezes antes de se lacrar.
— Te peguei! — exclamou
Ethan, correndo para pegar a cápsula no chão.
— É... Nosso objetivo não
era capturar Pokémon, mas tá valendo — riu Forrest.
— Ué... Mas pelo menos
temos uma nova adição na equipe, né? Pelo trabalho que ele deu, eu acho que ele
pode ser bem forte pra usar na Liga Pokémon.
As gotas de chuva começaram
a engrossar e a cair com mais força. Mais um trovão bradava ao longe e
aproximava-se num ressonar grave, arrepiando Ethan da cabeça aos pés. Quilava
grunhiu insatisfeito — afinal, sendo um Pokémon do tipo Fogo, detestava água, principalmente
se ela viesse em forma de chuva e não tivesse onde se esconder.
— O clima instável será
perfeito para o nosso treinamento. A instabilidade é sempre um dos principais
elementos de uma batalha Pokémon, e quem sabe se utilizar dela geralmente é
quem se consagra vencedor — explicou Forrest. — Ethan, você se lembra da
batalha contra Jasmine, não é?
— Claro, cara... Tudo
naquela batalha saiu do controle. Até o farol foi derrubado... — Ethan não pode
deixar de dar um sorriso travesso.
— Pois então, por mais que
tenha sido de uma maneira instintiva, você manteve o controle da batalha.
Precisamos ter esse controle na manga, independente da situação. Foi por isso
que eu decidi começar nosso primeiro treinamento hoje, quando a previsão
meteorológica é de chuvas intensas em Blackthorn e região.
Ethan olhou para os
Pokémon. Aquela ideia não parecia inteligente.
— Você sabe que eu não
tenho seguro de vida, né, cara? Eu sou pobre. Se a minha mãe ficar sabendo
disso, ela te mata!
— Esquenta não que eu já
liguei pra tia Marieta e ela autorizou. Inclusive... — Forrest tirou a mochila
e procurou algo dentro dela, trazendo para fora uma folha de papel. — Aqui
está. Uma autorização por escrito me dando total liberdade para trabalhar como
eu bem entender no seu treinamento.
Ethan correu e tomou o
papel das mãos de Forrest. Leu todo o conteúdo em uma velocidade
impressionante.
— “Eu, responsável legal pelo treinador Ethan
Heart, autorizo o senhor Forrest Mason a treinar meu filho da maneira como bem
entender”, ESSA É A ASSINATURA DELA MESMO!
A
chuva começou a cair com força. Forrest tomou o papel das mãos de Ethan e o
tornou a guardar na mochila.
— O
Gligar foi só o começo. Têm outros da mesma espécie aqui nessa montanha e nosso
objetivo é derrotar cinquenta deles.
—
CINQUENTA?! EU MAL CONSEGUI DERROTAR UM, CÊ QUER ME FAZER DERROTAR CINQUENTA?!
—
Você, não. Seus Pokémon.
—
Você só pode estar brincando.
—
Quer pagar pra ver? — perguntou o moreno de forma séria.
Outro
trovão ressonou pelo céu escuro. Forrest soava muito mais ameaçador com todos
aqueles raios caindo sob sua cabeça.
—
T-Tá bem... Vamos nessa.
—
Ethan, Ethan! O guarda-chuva! — exclamou uma voz infantil.
Ethan
e Forrest surpreenderam-se ao ver Elaine e Chase, acompanhados de Pikachu e
Eevee, correndo em sua direção. As duas crianças ofegavam e estavam encharcadas
pela chuva que já caía com intensidade.
— O
que vocês estão fazendo aqui? — perguntou Ethan, indo de encontro com os dois.
—
Imagina que a gente ia perder a oportunidade de ver você treinando! — exclamou
Elaine.
—
Se eu soubesse que você ia chegar falando a verdade, a gente não tinha perdido
tanto tempo inventando a desculpa, Ni... — murmurou Chase.
—
Vocês nem deveriam estar aqui, pra começo de conversa. Voltem pro Centro
Pokémon — disse Forrest, aproximando-se dos irmãos. — É perigoso.
—
Perigo? Eu rio da cara do perigo! — disse a menina em uma risada debochada. —
Nós estamos acostumados em assistir os treinamentos de vocês!
—
Mas você nunca assistiu um treinamento nosso — comentou Ethan.
Elaine
e Chase se entreolharam em um silêncio constrangedor.
—
É-é só modo de falar, tio! — riu ela sem graça.
Mais
um trovão rasgou o céu e fez Elaine encolher os ombros ao mesmo tempo que Ethan
fazia o mesmo gesto. Se fosse combinado, não teria dado certo.
—
Vocês têm certeza que vocês querem ficar e assistir? — perguntou Forrest.
—
Não — respondeu Chase.
—
Sim! — exclamou Elaine, com vigor.
Ethan
e Forrest se entreolharam.
—
Então está bem. Rocky! — Forrest sacou uma PokéBola do bolso da calça e
pressionou o botão central da cápsula bicolor. A enorme serpente de metal
surgiu majestosa, rugindo tão alto quanto os trovões que desciam do céu.
—
Rocky?! Mas ele não é fraco contra o Tipo Água? Ele deveria se incomodar em ficar
se molhando... — comentou Ethan.
— É
exatamente por isso que estamos treinando aqui hoje. Independente da condição
do ambiente, seus Pokémon devem tentar se manter firmes. Uma condição climática
como chuva, sol ou até mesmo uma nevasca que pode ajudar os Pokémon ou podem
enfraquecê-los. Por isso você deve entender que é importante estar aqui fora,
Quilava, mesmo que você deteste se molhar — explicou Forrest olhando para o
Pokémon de Ethan que, encharcado, olhava de mau humor para todos. — Rocky, por
favor, proteja os dois, sim?
Steelix
afirmou com a cabeça e enrolou gentilmente seu corpo ao redor de Elaine e
Chase. A cabeça do Pokémon passou a impedir que a chuva continuasse molhando os
irmãos.
Forrest
caminhou até os gêmeos e pegou o guarda-chuva das mãos de Elaine e o abriu,
abrigando-se.
—
Muito bem, Ethan. Vamos começar? Use Quilava para derrotar 50 Gligars.
O
garoto suspirou visivelmente contrariado.
—
Se você insiste... Vamos, Lava!
Quilava
não se mexeu.
—
Vai ser um longo dia... — comentou
Ethan, levando a palma da mão até o rosto em um sinal de frustração. O garoto
caminhou até Quilava e tentou arrastá-lo pelos braços. Por sua vez, o Pokémon lançou
um Ember na direção de Ethan,
atingindo-o em cheio, o que acabou sendo um gatilho para uma discussão entre os
dois, o que fez Forrest, Chase e Elaine se entreolharem sem saber se, de fato,
deveriam intervir naquilo.
Um
raio caiu do céu em direção a Ethan e Quilava. O parafuso no topo de uma das
cabeças de Faísca serviu como um pára-raios, atraindo o raio elétrico, fazendo
com que o Magneton absorvesse aquela poderosa carga elétrica. Um som agudo e
estridente foi emitido dos imãs que o Pokémon carregava em seu corpo, fazendo
com que todos os presentes tentassem de alguma maneira proteger os ouvidos.
—
FAÍSCA! — berrou Ethan, correndo na direção do Pokémon.
—
ETHAN, NÃO! — Forrest gritou de volta antes de perceber que já era tarde.
Ethan
abraçou Faísca e imediatamente sentiu seus músculos travarem. Gritou de dor.
Parte da carga elétrica absorvida por Faísca fora descarregada no garoto,
fazendo com que ele recebesse um baita choque, ajoelhando-se no chão com as
pernas bambas.
—
Ethan! Você está bem? — perguntou Forrest aproximando-se do amigo. Ethan não
respondeu.
Elaine
e Chase tentaram correr na direção dos garotos, mas Steelix encolheu o espaço entre
seu corpo e o dos gêmeos, impedindo que eles se libertassem daquela prisão.
—
Rocky, deixa a gente ir até lá! — pediu a menina de forma séria, conseguindo
apenas um grunhido alto de resposta.
Magneton
libertou-se dos braços de seu treinador e o encarou com uma feição preocupada.
Ethan, de bruços, tentou erguer-se sem sucesso. A sensação de formigamento
tomava conta de seu corpo inteiro e o fato de estar molhado por causa da chuva
só trazia a certeza da seriedade daquilo.
—
E-eu n-não v-vou d-d-desistir... — murmurou Ethan, ainda esforçando-se para se
levantar.
Quilava
aproximou-se de seu treinador e se colocou embaixo de seu corpo, empurrando-o
para cima. Os outros Pokémon de Ethan também se aproximaram e auxiliaram o
garoto a se levantar, usando Forrest de apoio.
—
Você está bem, cara? — perguntou Forrest, preocupado.
—
F-foi s-só um c-choque... V-vou ficar bem! — sorriu o garoto, cambaleando.
Ethan
olhou para Faísca, ainda meio tonto. Uma ideia passou pela sua cabeça.
—
Ei, Faísca... Você sempre consegue atrair raios assim?
— Bzz... — respondeu o Pokémon sem
entender o questionamento de seu treinador.
— O
que quer dizer com isso, Ethan? — perguntou Forrest.
—
Forrest, e se o Faísca pudesse atrair raios elétricos através dos imãs dele e de
alguma forma canalizasse essa energia pra disparar raios elétricos?
Forrest
ergueu as sobrancelhas completamente surpreso pelo comentário do amigo.
—
Você está bem mesmo, cara? Esse choque afetou seu cérebro...
— É
uma ideia ruim? — perguntou Ethan.
—
Não... É genial! — exclamou Forrest com um sorriso. — Acho que podemos tentar.
Aproveitando
a chuva que caía, Ethan passou o resto do dia incentivando Quilava a acender
suas chamas mesmo na chuva e a mantê-las acesas pelo máximo de tempo possível enquanto
Faísca aprimorava seu Thundershock atraindo
a eletricidade dos raios das nuvens de tempestade.
***
Havia
um riacho na Rota 45 onde Ethan e Forrest descobriram existir uma pequena
casinha de madeira onde moravam dois velhinhos que auxiliavam os garotos na
recuperação de seus Pokémon — o que facilitou muito o trabalho, visto que eles
não precisavam voltar para Blackthorn para usar o Centro Pokémon. Em
agradecimento, Forrest se ofereceu para auxiliar os curandeiros para reformar o
pequeno herbário antigo que fora construído ao lado da cabana em que os dois
moravam. O moreno orientou Ethan a pedir que Sandslash aperfeiçoasse seu Fury Swipes cortando a madeira que seria
usada para a construção que era recolhida pelo próprio Ethan e sua equipe de
Pokémon. Durante a tarefa, porém, algo chamou a atenção de Ethan enquanto o
garoto caminhava com Wobbuffet pelas margens do riacho enquanto seguravam
algumas toras de madeira. Um Pokémon de
pelagem roxa que se assemelhava a um macaco pendurava-se alegremente pelos
galhos das árvores próximas. O garoto sacou sua PokéDex.
— “Aipom, o Pokémon Cauda Longa. Sua cauda é
tão poderosa que pode ser usada para agarrar um galho de árvore e se manter no
ar. Ele vive no topo de árvores altas. Ao saltar de galho em galho, ele habilmente
usa sua cauda para se equilibrar” — informou o dispositivo.
—
Caraca, um Aipom! Ele pode vir a ser um grande Pokémon na equipe, o que você
acha, Wobbuffet?
— Woah? — respondeu o Pokémon, como
sempre, batendo continência ao garoto.
—
Certo, Wobbuffet! Vamos capturá-lo, eu escolho você!
Ethan
apontou em direção ao Aipom. Wobbuffet tomou a frente, desta vez batendo
continência para o Aipom na árvore.
— Wobbuffet! — exclamou o Pokémon azul de
forma feliz.
O
Aipom encarou o Pokémon de Ethan com certa curiosidade. Deu uma risadinha malandra
e voltou a escalar de galho em galho, desaparecendo no meio da mata. Ethan cobriu
o rosto com a mão em uma expressão de constrangimento.
—
Você nunca toma a iniciativa das coisas, né?
Wobbuffet
voltou a encarar o seu treinador e ostentou uma bela pose.
— Wobbuffet, Wobbu! — bradou contente. Havia considerado aquilo como uma bela vitória da sua parte.
***
Já
havia se passado um mês desde que os treinamentos de Ethan e sua equipe de
Pokémon havia se iniciado. Mesmo com o aniversário de Forrest em 10 de Julho,
não houve pausa nenhuma no treinamento do garoto, que muitas vezes passava a
madrugada com seus Pokémon aplicando diversas técnicas conduzidas pelo amigo
para que os status da equipe de Pokémon de Ethan se desenvolvesse. Forrest
pediu inclusive para que Ethan trouxesse ao treinamento Pokémon que estavam no
Laboratório do Professor Elm, como Butterfree e Scyther. A cada dia que se
passava, um Pokémon da equipe de Ethan apresentava visíveis melhorias, a equipe
crescia em entrosamento e habilidades.
—
Você está sabendo da novidade? — perguntou Forrest a Ethan.
—
Qual? — quis saber Ethan, entre um gole e outro de Água Fresca que bebia para
tentar hidratar seu corpo completamente suado após uma sessão bem sucedida de
treinos.
— A
Liga Pokémon desse ano ocorrerá em White City.
—
White City? Onde fica isso? — perguntou Ethan, empolgado.
— É
uma cidade construída em uma ilha ao sul de Johto, na mesma rota marítima que
leva a Alto Mare.
— A
cidade lendária?! — exclamou o menino.
—
Ela mesma.
— E
quando será a Liga?!
—
Em Fevereiro do ano que vem. Haverá um navio que sairá de Olivine direto pra
lá.
Ethan
olhou em direção ao lago que havia ali próximo, bem no meio da Rota 45. Foi ali, naquele local, que ele havia passado
as últimas semanas junto aos seus Pokémon sendo treinado e elaborando
estratégias para a vindoura batalha contra Clair que aproximava-se. Os dois
inclusive até acharam alguns itens valiosos para o treinamento, até mesmo um
Revestimento de Metal* fora localizado nas margens do lago. Receber a notícia
do local onde aconteceria a Liga Pokémon encheu o coração do menino de alegria,
pois todos os empecilhos que enfrentou o fizeram chegar até ali, junto com sua
equipe de Pokémon que, mais do que força, ostentava um forte desejo de força de
vontade que há muito tempo não se sentia.
O
garoto fechou a garrafa de água e olhou com um sorriso confiante para o amigo.
—
Sabe, Forrest, independente do resultado da batalha com a Clair, eu sinto que
eu evoluí muito nesse tempo pra cá. Obrigado por sempre acreditar em mim.
Forrest
apoiou a mão no ombro do amigo.
—
Eu sempre acreditei, cara. Você é meu melhor amigo. Você está pronto para lutar
pela sua última insígnia.
Ethan
ficou em silêncio por alguns instantes.
—
Você acha mesmo? Eu não me sinto preparado ainda.
—
Você nunca vai estar — disse o garoto para espanto de Ethan. — Mas eu acho que
a graça é essa, afinal, se a gente pensar muito, desiste. E não estamos aqui
pra desistir.
O
garoto desviou o olhar de Forrest. Começou a sentir um frio na barriga que há
tempos não sentia.
—
Vamos parar por hoje. Você precisa de um bom banho e uma boa noite de sono.
Amanhã, vá até o Ginásio e marque sua batalha.
—
Espero contar com a sua torcida.
—
Você contará, mas não me verá lá.
—
Mas por quê? — perguntou Ethan erguendo as sobrancelhas, surpreso. — Você não
vai assistir minha batalha?
—
Não dessa vez. Afinal de contas, você estará com seus Pokémon. E assim como eu
e Amy não estivemos na primeira batalha, também não estaremos presentes agora.
Você consegue!
—
Estou com saudades dela... Espero que ela esteja bem.
— É
a Amy, cara. Ela sempre vai dar um jeito de se sobressair. E sei que ela também
está torcendo por você.
—
Mesmo eu sendo um ridículo?
—
É, aí vocês vão ter que conversar — riu o garoto.
—
Obrigado pela força, amigo — retrucou
Ethan de forma irônica.
—
Foque na batalha, Ethan. Coloque em prática o que você aprendeu, depois a gente
foca em consertar as coisas com a Amy.
Ethan
concordou com a cabeça.
***
Ao
recolher seus Pokémon com a Enfermeira Joy, Ethan já sabia que estava prestes a
mudar sua vida para sempre. Não encontrou Forrest no Centro Pokémon, muito
menos Elaine e Chase que estavam sempre o seguindo em dias de chuva ou de sol. Apesar
do garoto muitas vezes se irritar com a presença das duas crianças que teimavam
em corrigir alguma birra do próprio Ethan, ele gostava da companhia delas como
se fossem parte de sua família, irmãos que nunca teve.
Arrumou
seu boné como sempre gostava, com a aba voltada para trás da cabeça e seu
topete rebelde vazando para fora das tiras que o ajustava. Respirou fundo e saiu
pelas portas automáticas do prédio.
Como
sempre, o sol se escondia sobre densas nuvens. Fazia quase dois meses que o
garoto havia chegado em Blackthorn e em todo esse tempo não havia visto um dia
ensolarado sequer. Às vezes, sentia falta do litoral de Olivine. Antes de
seguir para o desafio do Ginásio, no entanto, Ethan pegou o caminho para a Rota
45, em direção ao riacho que serviu de auxílio durante seu treinamento. Apesar
da esperança de encontrar os amigos ali, também não os viu, mas sorriu quando
um vento suave tocou seu rosto. Retirou do bolso uma PokéBola e a encarou por
alguns instantes antes de apertar o botão central e liberar Quilava de dentro
da esfera.
Tanto
Ethan, quanto Quilava, admiraram em silêncio a plenitude daquele lugar. Não
havia raios, trovões ou tempestades, apenas a natureza majestosa que os
cercava.
—
Sabe amigão, eu estive pensando numa coisa. Hoje é um daqueles dias que vai
mudar a nossa vida pra sempre. Eu fico feliz por você ter me dado uma chance de
crescer comigo e ter me ajudado durante todo esse tempo. Eu não chegaria aqui
sem você.
Quilava
olhou para seu treinador e sorriu.
— É
até engraçado perceber que há alguns meses, esse turbilhão de sentimentos
dentro de mim me fez agir por impulso e fazer coisas terríveis. Poder agora
estar do seu lado com toda essa calmaria aqui fora e aqui dentro me deixa contente,
feliz de verdade. Apesar de tudo, eu confesso que estou nervoso, mas eu sei que
você e o pessoal estarão comigo, eu não vou estar sozinho. Nunca estive.
Ethan
agachou e abraçou seu Quilava. O corpo do Pokémon era quente.
— É
agora, parceiro. Chegou nossa vez.
O
garoto encarou o riacho pela última vez antes de virar as costas
definitivamente e caminhar pela estrada que levava de volta para Blackthorn.
Quilava foi acompanhando seu treinador, que ficou em silêncio enquanto
repassava mentalmente cada possibilidade de estratégia que poderia usar contra
os poderosos dragões de Clair. A batalha que estava prestes a encarar com
certeza o transformaria em uma pessoa diferente.
Ethan
só foi despertado dos pensamentos que o distraíam quando, ao virar a esquina,
deu de cara com as belíssimas esculturas feitas em pedra de dois Dragonites
imponentes que encaravam qualquer um que tivesse coragem o bastante para chegar
próximo das portas do Ginásio da cidade. Estranhamente, havia uma placa
colocada embaixo de uma das esculturas que o garoto tinha certeza de não estar
ali no dia anterior, quando foi até o local para reservar seu horário para a
disputa de logo mais. Aproximou-se e leu, com certo espanto, as palavras
escritas em latim com a tradução ao lado: Draco
Dormiens Nunquam Titillandus.
—
“Nunca faça cócegas em um dragão adormecido”? Como assim? O que será que isso
quer dizer?
Ethan
olhou para os lados e não viu ninguém. Deu de ombros, retornou Quilava para a
PokéBola e entrou pela porta da frente do Ginásio.
—
Você quase me faz admirá-lo.
A
voz de Clair surpreendeu o garoto que congelou no lugar onde estava. A mulher
aproximou-se devagar, com sua capa majestosa esvoaçando de forma sensual,
acompanhando o balanço de seu rebolado.
— Clair! Estou aqui para minha revanche! —
exclamou Ethan para a mulher, que parou em sua frente com as mãos na cintura.
— Nos últimos tempos, eu ouvi demais o seu
nome por aí. Em cada esquina em que eu passei, em cada lugar em que eu entrei
só se falava em seu nome. Falava-se em Ethan, jovem treinador que abandonou os
Pokémon porque não conseguiu lidar com o peso e a frustração de ser derrotados
em uma batalha contra mim — comentou Clair, quase em um sussurro. — Eu mesma
não acreditei quando li seu nome na programação de hoje, voltei a lembrar
daquele dia em que você saiu daqui completamente perdido, sem o apoio de seus
Pokémon.
Os olhos azuis de Clair fitavam os olhos de
Ethan de uma forma severa.
— Eu estou pronto para enfrentá-la — disse o
garoto de maneira firme.
— É inegável que seus Pokémon possuem força.
Você tem um Tyranitar em sua equipe que destruiu meu clube de treinos. Seu
Tyranitar foi treinado pela minha Dragonair e veja só, hoje pode ser o dia em
que eles poderão colocar em prática o resultado de seu treinamento. — A Líder
do Ginásio desviou o olhar para o campo de batalha no andar inferior. — Nunca
faça cócegas em um dragão adormecido. Você sabe o que quer dizer?
Ethan respondeu balançando a cabeça de forma
negativa.
— Muitas vezes fazemos uso do que achamos ser
uma vantagem para tentar tirar proveito de uma situação. Os dragões são
criaturas formidáveis, são poderosas, sim, mas demonstram seu poder máximo
apenas com aqueles que conseguem domá-los... Eu passei a minha vida inteira
tentando provar pra mim mesma que eu sou a maior de todas, mas o reconhecimento
que eu acredito que preciso não me é dado. É frustrante... Mas ao invés de me
lamentar por causa disso, eu simplesmente busco me tornar mais forte, porque um
Dragon Tamer de verdade jamais curvará a cabeça, independente do inimigo. Eu
sou a melhor Mestra de Dragões do mundo porque me sinto assim e não preciso de
cerimônias para afirmarem isso. Hoje, eu sei que um treinador precisaria de
anos de experiência para chegar ao meu nível. Você, na
última batalha, não conseguiu se defender. Foi facilmente derrotado. Será que
você está apto para conseguir a insígnia desse Ginásio? — perguntou Clair de
forma séria.
— Eu não sei — respondeu o garoto, fazendo com
que a mulher erguesse o cenho, surpreendida pela resposta. — A gente nunca pode
dizer que tem o controle de uma batalha sem participar dela antes. Muitos
fatores podem mudar o curso de uma vitória, mas se eu estou aqui, é porque
acredito que meus Pokémon e eu estamos prontos para ao menos tentar te cansar
um pouquinho.
A mulher examinou Ethan de cima a baixo. Sem
dizer uma única palavra, caminhou até um dos elevadores ao fim do corredor que
davam acesso ao campo de batalha.
— Muito bem. Vamos ver o que você tem a
oferecer dessa vez. — Ethan viu as portas do elevador se fecharem e cerrou os
punhos. Apressou-se para ir até o elevador que o levaria até o seu lado do campo
de batalha.
O calor emanado pela lava quente que escorria
por debaixo do campo de batalha parecia ainda mais intenso. Ethan ainda não
entendia como aquela mulher conseguia manter-se de capa, mas desta vez não fez
qualquer comentário a respeito disso. Lembrou do conselho de Forrest sobre
condições adversas em batalha, principalmente em relação ao ambiente em que ela
aconteceria, e concentrou-se apenas para tentar usar isso a favor de si.
— Assim como da última vez, eu usarei três
Pokémon. Você, desafiante, pode usar quantos Pokémon desejar e acredito que
você irá precisar usar todos mesmo — avisou Clair.
— Não me subestime, Clair. Hoje os seus
Dragões precisarão de muito mais do que força pra me derrubar — respondeu Ethan
sacando uma PokéBola.
— Se você diz... Espero que pelo menos alguém
do seu time obedeça aos seus comandos dessa vez, desafiante — provocou a mulher
com sua primeira PokéBola em mãos.
Sincronizados
como se estivessem em uma dança, Ethan e Clair arremessaram suas PokéBolas no
campo de batalha. Iniciava agora uma das maiores batalhas de suas vidas.
TO BE CONTINUED...
*Revestimento de Metal = Metal Coat
Capítulo 61
O complexo arquitetônico
onde o Ginásio de Blackthorn era situado era um famoso ponto turístico da
cidade. Além dos habituais treinadores
que desafiavam Clair na tentativa de conseguir a insígnia local, também havia pessoas
que procuravam relaxar nas famosas saunas construídas dentro da popular “Toca
do Dragão”, uma parte do complexo principalmente frequentada por integrantes da
elite da cidade, treinadores de Pokémon Dragão de famílias milenares que
construíram a cidade de Blackthorn e que se orgulhavam de seu status de Dragon
Tamers. Mesmo que houvesse discussões a respeito do que era melhor, se as
saunas de Blackthorn ou as fontes termais de Lavaridge, na região de Hoenn— afinal as duas cidades utilizavam vulcões para
proporcionar tal entretenimento aos visitantes —, sabia-se que no fim das contas, o que valia era o conforto que o
lugar oferecia.
Mas não era apenas de
relaxamento que vivia o treinador Pokémon de Blackthorn. Batalhas Pokémon eram
parte da vida de cada Dragon Tamer que ali morava. E a Toca do Dragão também
era um point conhecido para marcar duelos. Dragões de todos os tipos se
enfrentavam e mediam força e poder em batalhas truculentas. Foi desse grupo de
seletos treinadores que nos últimos anos se destacaram dois dos maiores
representantes de Pokémon do tipo Dragão da região: Lance, o Campeão da Liga
Pokémon e Clair, sua prima, Líder do Ginásio local. Não à toa, dois lutadores
que ostentavam altíssimos números de vitórias quase ininterruptas.
Apesar de não faltar
tópicos para os treinadores da cidade poderem se exibir para quem quer que
fosse, o assunto principal dos últimos dias era um Pokémon poderoso que
apareceu para treinar junto aos dragões da Toca do Dragão e que aparentemente
estaria ostentando um certo status de invencibilidade, o que logo motivou os
frequentadores do local a testar suas habilidades perante aquele Pokémon
incrível. As fofocas, no entanto, indicavam que aquele Pokémon costumava fazer
parte da equipe de um treinador Pokémon que perdeu seu respeito, fazendo a
criatura passar a treinar sozinha. Naquela semana, 17 treinadores tentaram
capturá-lo e todos eles falharam. Frustração de uns, humilhação de outros, mas
sempre um encanto geral.
A Cidade de Blackthorn
nunca esteve tão agitada.
— Você ouviu os boatos, né? Sobre o Pokémon poderoso que está treinando na Toca do Dragão — perguntou Forrest a Ethan.
— Não se fala em outra coisa no Centro Pokémon... Será que eu tenho chance com ele?
— Você só vai saber se for lá.
Os dois amigos se encararam. Da janela do quarto, Ethan observava o
movimento da cidade. Já havia até se acostumado com o fato de os dias não serem
ensolarados em Blackthorn, o céu plúmbeo sumia com a lua e retornava ao
amanhecer, talvez pelo fato de que a cidade ficava entre enormes montanhas que
milhares de anos atrás faziam parte de um enorme vulcão, mas desde que estava
na cidade, Ethan não viu o sol brilhar nem uma única vez.
— Pupitar... — suspirou o garoto.
***
A tarde já caia no horizonte. O céu de tom ciano ia ficando cada vez
mais escuro, sinal de que a noite pedia espaço para ocupar as próximas 12
horas. Ethan e Forrest chegavam na entrada da Toca do Dragão em silêncio, o
primeiro por estar nervoso, o segundo por manter uma concentração afiada,
atento a qualquer movimento das ruas ao redor. O moreno sabia que Ethan havia
sido desafiado por Duster e que, diferente de outras ocasiões, o amigo estava
completamente sem motivações para enfrentar o oponente. Ethan já era um
adolescente que se deixava influenciar pelas emoções, então era evidente que o
medo de colocar tudo a perder com seus Pokémon o impedia de tomar decisões
racionais. Forrest, no entanto, sabia que não podia fazer nada, apenas Ethan
seria capaz de resolver por si só essa situação.
Quando as portas se abriram, um silêncio imediato se fez quando
notaram a presença de Ethan e Forrest. Logo, murmúrios e cochichos tomaram
conta do ambiente. A cada passo que dava, Ethan se sentia cada vez menor,
andava com os ombros encolhidos, querendo enterrar a cabeça no chão. O garoto
parou quando viu Forrest fazer o mesmo.
— Então você veio mesmo — a voz de Duster ecoou sobre o ambiente. —
Vejo que é um rapaz de palavra, apesar de ter vindo com segurança particular.
Ethan ergueu a cabeça e procurou no meio de tantas pessoas o rosto
conhecido do rival. Haviam tantas cabeças que Duster se camuflava bem entre
todas elas.
— Ele não é o meu segurança, ele é meu amigo. E eu não vim por sua
causa, eu vim atrás do meu Pokémon.
Mais murmúrios. Passos foram ouvidos e Duster pediu espaço para que,
finalmente, aparecesse perante Ethan e Forrest.
— “Seu Pokémon”? Ah, sim... Você se refere ao Pokémon que está
treinando aqui. Intrigante... Você apareceu na televisão encarando um exército
de Pokémon no Lago dos Magikarp, agora está aqui, arrependido após ter
abandonado seus Pokémon. Queria que as coisas fossem tão simples de se resolver
quanto você pensa que é...
Ethan e Forrest não responderam, apenas continuaram a observar o treinador.
— Vou contar uma coisa pra vocês. Os Dragon Tamers têm muito orgulho
de seu status porque é necessário muito esforço para consegui-lo. Treinar os Tipos
Dragão não é fácil, é uma tarefa árdua, complexa... Todos nós aqui temos algo
em comum, justamente o orgulho a satisfação de poder dizer que treinamos e
domamos o Tipo de Pokémon mais poderoso que existe.
Forrest não conseguiu se conter.
— E faz o que com esse orgulho e satisfação? Enfia onde?
Duster esboçou um sorriso cínico.
— Pra alguém do seu tipo... Você até que é engraçadinho.
O moreno não gostou do que ouviu.
— Como assim “alguém do meu
tipo”? O que você quer dizer com isso?
Um rugido enorme tomou
conta do ambiente e chamou a atenção de todos os presentes. Era um rugido
grave, forte, que fez o chão tremer por poucos segundos antes de um impacto
maior se dar em seguida. Esse sim trouxe uma onda de choque que desequilibrou
grande parte dos presentes, incluindo Ethan, levando-os a cair de bunda no
chão.
— É ele! O nosso convidado poderoso...
— comentou um dos treinadores do local com admiração.
— Pupitar...? É o Pupitar?
— questionou Ethan para Forrest, que não tirava os olhos de Duster.
— Pelo o que parece, e por
incrível que pareça... Acho que é sim, cara. Vá atrás dele.
— Você não vem junto?
— Confia em mim. Eu tenho
que saber de uma coisa com aquele engomadinho ali.
Ethan assentiu com a cabeça
e levantou-se do chão. Antes de seguir pelo corredor que ficava exatamente ao
fim do imenso salão em que se encontravam no momento, com paredes brancas
repleto de retratos com imagens de Pokémon do tipo Dragão e outros Dragon
Tamers — incluindo várias imagens de Lance e Clair em diferentes momentos da
vida —, sua atenção foi chamada por Duster.
— Onde você pensa que vai?
Eu ainda tenho assuntos a resolver com você.
Forrest sacou uma PokéBola
do bolso da calça.
— Acho que você se enganou.
O assunto que você tem que resolver é comigo.
— Escuta, neguinho, não tenho assunto nenhum pra
resolver contigo.
As palavras ditas por
Duster ecoaram na cabeça de Forrest. As pupilas do garoto se dilataram, o
sangue em suas veias começou a correr mais rápido e seus punhos se fecharam na
mesma velocidade em que seus músculos se contraíam. A fúria tomou conta do
moreno que avançou na direção de Duster, dando-lhe um soco em seu rosto tão
forte que o rapaz caiu de costas no chão.
A impressão de que se tinha
era que tudo acontecia em câmera lenta. As testemunhas assistiam estupefatas à
cena, inclusive Ethan, que furioso, deu meia volta e caminhou com passos
pesados na direção de Duster com os punhos em riste, pronto para executar um
soco.
— ETHAN! — berrou Forrest
para o garoto. — Eu me resolvo com ele. Pupitar. Agora!
Ethan paralisou por alguns
segundos antes de assentir de forma positiva com a cabeça sem tirar os olhos de
Duster. A têmpora do menino pulsava ritmada e o ódio exalava de cada poro de
sua pele. Respirou fundo e correu em disparada na direção do corredor em forma
de cauda de Dragonair que levava até as salas de treinamento. No entanto, seu trajeto
foi interrompido quando alguns treinadores liberaram seus Pokémon em sua
frente.
— Você não tem autorização
para passar daqui — comentou um dos Dragon Tamers.
— Mas é o meu Pokémon que
está ali dentro! — Exclamou Ethan em argumento.
— Você. Não. Passará —
outro treinador afirmou enfaticamente encarando Ethan de forma ameaçadora.
O garoto sentia um frio na
espinha ao se deparar com aqueles Pokémon. Dragonair e Dragonite mostravam
presas, um Gyarados rosnava e também havia um Kingdra que dispararia contra o
menino a qualquer momento. Ethan estava cercado.
— Rhydon, Earthquake! — Bradou a voz de Forrest.
O garoto liberou seu
Pokémon jogando sua PokéBola no ar. Rhydon se materializou e caiu no meio do
salão de entrada, jogando todo seu enorme peso no solo e causando um enorme
terremoto que rachou pisos e paredes, desequilibrando humanos e Pokémon.
Pedaços da estrutura do local começou a quebrar e a cair no meio de todos os
presentes.
— VOCÊ ESTÁ LOUCO? O QUE
PENSA QUE ESTÁ FAZENDO COM NOSSO LOCAL SAGRADO? — berrou Duster.
— Eu vou trazer essa bosta
a baixo — respondeu Forrest numa expressão sádica. Ele estava fora de si.
Enquanto Ethan corria para
cada vez mais para o interior da Toca do Dragão, Duster olhava Forrest
incrédulo. Não era possível que aquele garoto pudesse estar falando sério.
— Eu não posso deixar você
acabar com nosso local de treino... Esse lugar é milenar! A Toca do Dragão faz
parte dessa cidade, eu não vou deixar você ao menos sonhar em destruir mais um
centímetro que seja dessa construção.
— Eu não tô nem aí. Não
tenho nem um pingo de empatia pra um racista nojento que se acha superior aos
outros, mas que não é bom em nada, é só um adolescente filhinho de papai que
quer meter o louco... Vou te dar motivo pra você meter o louco. Rhydon, Earthquake de novo!
— Gabite, Take Down!
— Vou mostrar o porquê dos
Pokémon Dragão serem tão difíceis de se treinar. Dragon Claw!
— Stomp!
As garras de Gabite emanaram
um brilho azul-claro e sua energia aumentava exponencialmente seu tamanho. O
Dragão partiu em direção à Rhydon, que virou-se de costas para o oponente e preparou
um coice poderoso com a parte traseira de suas enormes patas, apoiando-se no
chão com as patas dianteiras. O choque dos dois golpes foi intenso e outra
parte do salão de entrada da Toca do Dragão desmanchou-se como papel. Gabite
fora arremessado para uma das colunas de sustentação do local, trazendo o teto
abaixo, para desespero de Duster. Forrest ostentava um olhar furioso, sua
respiração ofegante e suas veias pulsantes eram resultado de uma adrenalina que
há muito tempo não sentia. Ele só sairia dali quando destruísse seu oponente.
***
Havia um lago dentro de uma
enorme caverna situada abaixo das montanhas de Blackthorn. Em uma ilhota
construída no meio das águas, havia uma construção de madeira, um santuário,
que muitos sabiam da existência, mas muito poucos tinham acesso. O local era
pouco iluminado, com alguns focos de luz por entre as pedras espalhadas por
todos os cantos através das estalactites que decoravam de forma rústica aquele
ambiente. Do lado de fora do santuário, um senhor idoso, calvo, que não tinha
mais do que 1,60m de altura, mantinha as duas mãos para trás e, sem ao menos
piscar, mantinha os olhos fixos na água cristalina e imóvel. Podia-se ver no
fundo do lago estalagmites que encaravam aquele senhor da mesma forma estática
em que eram encarados.
Nem mesmo o som da porta
atrás do velho senhor o demoveu de sua concentração absoluta.
— Algum problema, Mestre? —
questionou a voz feminina.
— Hm... — grunhiu em
resposta. Demorou alguns instantes até que ele concedesse alguma resposta. —
Aproxime-se Clair. O que você vê?
A Líder de Ginásio aproximou-se
com calma e colocou-se ao lado de seu Mestre e encarou com certa curiosidade.
As águas continuavam calmas.
— Eu não vejo nada, senhor.
O velho olhou para Clair em
silêncio e grunhiu mais uma vez em resposta.
— Hm.
O silêncio voltou a tomar
seu lugar habitual. Clair voltou a olhar para a água do lago enquanto o idoso
parecia continuar perdido em pensamentos.
— Hm — resmungou outra vez.
— Se você joga uma pedra na água, ela vai gerar ondas que serão espalhadas por
todos os lados. E quando menos esperar, ela chega até você.
Clair ergueu as duas
sobrancelhas quando reparou que, lentamente, um fio de onda aproximava-se da
ilhota em que ela se encontrava.
— Distúrbio... Alguma coisa
alterou o estado de inércia da água do lago... O que foi?
— Hm. Você não sente? Não é
só a água.
Clair agachou-se e
pressionou a palma da mão no chão do santuário. Seu toque a fez sentir que o
chão tremia levemente, de maneira quase imperceptível.
— Terremoto. Causado por um
Pokémon. Esse tremor parece estar ressonando acima de nós.
— Você foi treinada por
mim, mas devo admitir que sua sensibilidade me surpreende. Está cada dia
melhor.
Clair respondeu curvando-se
perante seu Mestre em agradecimento ao elogio. As ondas suaves iam chegando com
maior freqüência e se chocando com a ilhota.
— Hm. Temos trabalho a
fazer — comentou o idoso.
***
Duster andava cambaleando
pelos corredores da Toca do Dragão, talvez pelo fato de o prédio inteiro ainda
tremer pela batalha que ainda acontecia no salão de entrada. O duelo contra
Forrest havia o levado à exaustão. A salvação do rapaz, no entanto, fora a
interferência dos outros treinadores do local que tomaram a frente e passaram a
enfrentar o poderoso Rhydon de Forrest enquanto Duster se preocupava em ir
atrás de Ethan.
— Esses otários não serão
melhores que eu... Destruir a Toca do Dragão, invadi-la por puro egoísmo...
Aquele moleque não vai domar aquele Pokémon antes de mim!
Um novo rugido chamou a
atenção. Um sorriso de satisfação tomou conta do rosto de Duster, que sacou uma
PokéBola e correu em direção ao som.
Ao entrar no dojô, o
sorriso deu lugar a uma expressão de espanto e encantamento. Finalmente, após
tanto ouvir falar da criatura pelas últimas semanas, o treinador pode ver com
seus próprios olhos aquela lenda, um Pokémon bípede enorme cujo corpo era
protegido por uma armadura robusta esverdeada praticamente impenetrável. Seus
dois pares de dentes pontiagudos causavam arrepio na espinha, qualquer mordida
daquela bocarra estraçalharia imediatamente o que quer que fosse, além de ter
costas e ombros espinhosos.
— Você é um Tyranitar, não é?
Você é a criatura que todos da cidade estão falando, a mais forte que apareceu
em tempos na Toca do Dragão... — Duster estendeu a PokéBola na direção do
Pokémon, que estava de costas para ele. — Por favor, me deixe enfrentá-lo!
— Pra quem se gabava de
oferecer ajuda por ser um treinador forte, você até que durou pouco lutando
conta o Forrest.
Duster surpreendeu-se ao
notar que Ethan estava presente na sala.
— Então você conseguiu encontrar
seu antigo Pokémon... Muito me surpreende.
— Estava conversando com
ele quando você apareceu.
— Que pena que eu
atrapalhei — Duster sorriu de forma debochada. — Mas eu estou louco pra lutar
contra esse Pokémon e quem sabe até adicioná-lo em minha equipe. Com certeza
nós dois seríamos os maiores treinadores de Blackthorn! E como você abandonou
seus Pokémon, logo, eu acredito que ele esteja disponível pra captura...
Duster apertou o botão
central de sua PokéBola e uma forte luz tomou conta do ambiente, materializando
Richard, o Feraligatr do treinador. Tyranitar rosnou ao deparar-se com o
oponente.
— Tyranitar! — gritou Ethan
para o Pokémon sem tirar os olhos de Duster. — Quando eu cometi o erro de
querer me comparar com esse cara, eu não imaginava que estava querendo ser
igual a alguém tão baixo. Fui egoísta em não reconhecer seus valores, quis
fazer como ele, ser um treinador mesquinho que se encontra acima de todos. O
meu perdão não é da boca pra fora, eu reconheço que eu fui um treinador
horrível e você tem todo o direito de não aceitá-lo.
Duster começou a bater
palmas.
— Ora, ora, ora... Belo
discurso. Eu até me emocionaria se não fosse a coisa mais hipócrita que eu já
ouvi na minha vida. Grande treinador você, que descarta seus Pokémon e vem
pedir perdão como se fosse a coisa mais simples do mundo!
— Hm. Ao pecado sempre cabe
a humildade do perdão.
Ethan e Duster olharam para
a porta de entrada do dojô e surpreenderam-se com um senhor já idoso, calvo,
que não tinha mais do que 1,60m de altura e que equilibrava-se com a ajuda de
um longo bastão de madeira com uma PokéBola no topo.
— Mestre?! O que está
fazendo aqui?
— Muito me surpreende você
me fazer essa pergunta. Hm. Se bem me lembro, você estava confrontando esse
garoto.
— Sim, Mestre, é verdade.
Esse garoto e o amigo dele estão destruindo a nossa sagrada Toca do Dragão! Eu
estava confrontando-o, não podia deixar isso acontecer.
O Mestre da Toca do Dragão
olhou para Ethan por alguns segundos antes de se dirigir ao garoto.
— Ei, vovô. Não adianta
dizer que a história não é bem assim, né? O senhor não me conhece, então não
tem porque o senhor acreditar em mim — comentou Ethan de forma séria.
A expressão convencida de
Duster foi substituída por incredulidade.
— Mais respeito com o nosso
Mestre, moleque! — esbravejou o rapaz antes de ser cortado pela serena
expressão do idoso, que o encarou.
— Contenha-se, jovem. Ainda
não lhe cedi a palavra.
Duster engoliu em seco. O
velho homem voltou a encarar Ethan e aproximou-se do menino, o analisando de
cima a baixo antes de repousar os olhos no enorme Tyranitar, que colocou-se de
joelhos para permitir que o idoso acariciasse o topo de sua cabeça.
— Isso, isso. Você é um bom
rapaz, um bom rapaz. Hm — sorria enquanto dava leves tapinhas no cocuruto do
Pokémon, para a surpresa de seu ex-treinador e de Duster. — Você não me
conhece, mas eu ouvi falar sobre você, garoto. Muitas coisas.
Ethan sentiu um frio na
barriga.
— Hm. Eu posso ser um pobre
velho hoje, mas eu já tive a sua idade, sabia? Eram outros tempos. Eu vi
guerras, eu vi ditaduras. Eu vi homens e mulheres beberem da água do poder e se
afogarem. E durante todo esse tempo, eu me esforcei em estudar e treinar os
Pokémon Dragões, não para conquistar poder, mas para honrar os meus
antepassados. Muitos deles deram suas vidas junto aos Pokémon para que hoje
você poaa ter liberdade. Responda-me uma coisa, garoto. O que os Pokémon são
para você? Hm?
Ethan hesitou por um
instante pela pergunta repentina. Pensou por alguns segundos em milhões de
respostas, mas preferiu optar pela mais singela. A única resposta que poderia
vir do seu coração.
— Os Pokémon são meus
amigos.
O Mestre do clã dos Dragões
manteve sua expressão serena, mas não deixou de massagear seu queixo,
refletindo sobre a resposta de Ethan.
— Hm. Muito bem. E o que
ajuda você a vencer batalhas?
— Treinamento, senhor.
Treinar bastante sempre me ajudou a desenvolver novas técnicas para ajudar meus
Pokémon em batalhas.
O velho homem coçou o
queixo novamente e virou-se para Duster.
— Qual é o tipo de
treinador que o senhor procura enfrentar? Hm?
Duster não pestanejou antes
de responder.
— Os mais fortes, Mestre.
Sempre!
A expressão serena do idoso
se mantinha firme enquanto ele massageava o queixo com mais intensidade.
— Hm. Pokémon forte.
Pokémon fraco. Qual dos dois é mais importante?
— Eu sou um Dragon Tamer,
Mestre! Claro que queremos apenas os Pokémon mais fortes ao nosso lado! —
Respondeu Duster, orgulhoso de sua resposta.
O Mestre Dragão segurou de
forma firme seu bastão de madeira. Em silêncio, dirigiu-se a passos lentos até
a porta da sala enquanto parecia perdido em pensamentos. Então virou-se para os
dois jovens e os encarou sem desfazer sua expressão serena.
— Hm... O amor se demonstra
de muitas formas. Dentro de uma amizade, dentro de uma paixão entre duas
pessoas que se atraem, dentro de uma relação entre pais e seus filhos... Somos
seres falhos. Vivemos errando e machucando uns aos outros. Mas, hm... O que
realmente nos faz reconhecer o amor é justamente reconhecermos que ferimos
alguém que nós amamos e o quanto essa constatação nos dói. O fato de pedirmos
perdão não nos torna inferior a ninguém, nos faz mais fortes. Afinal, precisamos
ser fortes para que possamos encarar o medo de enfrentar a rejeição que teremos
após magoarmos alguém. Hm. Você está banido do clã dos Dragões, senhor Duster.
O garoto ergueu as sobrancelhas.
O ar sumiu de seus pulmões e suas pernas ficaram bambas.
— M-Mestre…? Como assim, b-banido?!
— Você e seus colegas não
seguem os princípios do clã dos Dragões. A cidade de Blackthorn há muito tempo
vem sofrendo com comentários negativos pelo comportamento inapropriado dos
Dragon Tamers. Hm. E não é com esses princípios que os Pokémon Dragões devem
ser treinados, não se deve valorizar apenas a força. E eles não merecem ser
treinados por pessoas como o senhor, que inferiorizam oponentes pela cor da
pele.
— Mas... Clair e Lance,
senhor! Os Dragon Tamers mais poderosos do mundo! O poder deles...
— Hm. Você jamais será como
Clair e Lance.
As palavras do Mestre dos
Dragões atingiram Duster como um soco na cara.
— Clair e Lance tem uma
coisa que seus colegas jamais demonstraram ter. Amor. Um Pokémon deve sempre ser cuidado com amor e assim ele se
fortalecerá junto ao seu treinador. Amor. Cumplicidade. Confiança. É assim que
se constrói um verdadeiro Mestre Pokémon. Hm. A partir de hoje, todas as atividades
da Toca do Dragão estão encerradas. Foi bom enquanto durou, não é?
Duster fechou os punhos. O
ódio subia em suas veias e o fazia ranger os dentes.
— O senhor não pode fazer
isso! Eu não vou deixar! — Vociferou o rapaz.
O Mestre dos Dragões gargalhou
antes de se retirar pela porta.
— Você não tem poder algum
aqui, Duster Santiago.
O rapaz nada pode fazer.
Lágrimas caíam de seus olhos em direção ao tatame do dojô, seus punhos tremiam e
seus músculos se contraíam. Não era possível, aquilo não podia estar
acontecendo. Só tinha uma explicação, e ele sabia quem era o responsável por
aquele pesadelo.
— VOCÊ! — berrou o garoto,
com o dedo em riste apontando para Ethan. — A CULPA É TODA SUA! EU VOU ACABAR
COM VOCÊ!
Duster partiu em direção a
Ethan. Tyranitar deu um passo à frente e ficou entre o rapaz e seu treinador e
deu um rugido alto de aviso.
— Você acha mesmo que eu
vou temer um Pokémon como você? Richard, Dragon Pulse!
O Feraligatr abriu a enorme
boca e disparou uma bola púrpura na direção de Ethan e de Tyranitar. O garoto
então viu seu Pokémon receber o golpe e não se mover mais. Parado em sua
frente, Ethan temeu.
— Tyranitar! — Chamou o
garoto sem obter resposta. No entanto, o enorme Pokémon começou a rosnar. Seus
olhos começaram a ficar vermelhos e seu corpo emanou uma aura rubra. Dessa vez,
Duster arregalou os olhos e sentiu medo.
— Isso é... Esse golpe é
o...
Tyranitar rugiu. O chão
tremeu com fúria e aquele urro potente ecoou pelos corredores e alcançou o
salão de entrada da Toca do Dragão, colapsando tudo o que se chocava com a onda
sonora.
— O que está acontecendo lá
dentro?! — exclamou Clair.
— É a criatura que andou
treinando junto aos dragões, Mestra. Inclusive com Nádia —respondeu um dos
treinadores entre as ruínas de um local agora irreconhecível. Praticamente
demolido, o lugar antes enfeitado com pompa não passava de pedaços de concreto
e marfim espalhados por todos os lugares.
— Eu não reconheci o
rugido... Quem é esse Pokémon? — questionou Clair ao rapaz.
— Hm. Tyranitar — a voz do
Mestre dos Dragões surpreendeu os presentes.
— Tyranitar? Então o
Pupitar do Ethan... — comentou Forrest de forma surpresa.
— Mestre! Esse rugido... É
um Outrage, não é? — perguntou Clair
já sabendo da resposta.
— Hm. Precisamente.
Protejam-se — pediu o idoso batendo seu bastão de madeira com força no chão.
A força do golpe de
Tyranitar explodiu as paredes do dojô e arremessou Duster e Feraligatr. A
cortina de ar espalhou-se por todos os lados com violência, revirando tudo do
avesso. As estruturas do edifício não aguentaram tamanha pressão e vieram a
ceder.
A Toca do Dragão ia sendo
demolida com tamanha fúria que o quarteirão inteiro tremeu.
Ethan olhava assustado para
Tyranitar enquanto tentava se manter agarrado em uma viga de ferro da
construção que ainda insistia em se manter de pé fincada no solo. Não se via
mais rastros de Duster ou de Feraligatr, os dois estavam debaixo dos escombros
da construção. Tyranitar continuava a urrar e a disparar bolas de energia de
sua boca para todas as direções. O Pokémon virou-se na direção de Ethan e rugiu
para seu treinador. Um rugido pesado, que colocava pra fora toda a mágoa presa
em seu coração. Ethan temeu mais uma vez ao se ver sozinho perante um Pokémon
descontrolado. Olhou para os olhos de Tyranitar e não viu suas pupilas.
Tyranitar preparou-se para dar um soco, mas ao invés de acertar Ethan, atingiu
o próprio peito, caindo no chão berrando de dor.
— TYRANITAR! — berrava
Ethan. — TYRANITAR, POR FAVOR, PARE COM ISSO!
A enorme criatura
levantou-se outra vez e preparou outro soco. Ethan largou a viga de ferro e,
agindo por impulso, saltou na direção de Tyranitar, agarrando-se ao braço
esquerdo do Pokémon, que usou o braço direito para atingir-se na face, novamente
caindo ao chão.
— Tyranitar... Me
desculpe... Por favor, me perdoe... — Ethan começou a chorar. Abraçado ao corpo
ferido do enorme Pokémon, o garoto suplicava. — Pare de se machucar por minha
causa, você não merece passar por isso... Não merece mesmo!
Tyranitar abriu os olhos e
viu o treinador agarrado ao seu tórax. As lágrimas do menino escorriam pelas
laterais de seu corpo. Aquilo tocou o Pokémon, que grunhiu passando o braço
pelas costas de Ethan e o abraçando.
Havia perdão porque havia
amor.
TO BE CONTINUED...