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Capítulo 66

 



— Entrando no ar em 5, 4, 3...

 

O botão do switcher, na mesa de corte, foi acionado quando se chegou ao número 1. A vinheta de abertura do Golden News, jornal da Goldenrod TV, começou a rodar, apresentando para toda a região de Johto — através de emissoras próprias ou afiliadas — as principais noticias do dia. No estúdio, o cameraman posicionou o equipamento — o de número 3 — em direção à bancada onde encontravam-se sentados dois jornalistas, um homem e uma mulher. Ele com os cabelos perfeitamente penteados, a gravata vermelha alinhada com a camisa branca e o paletó do terno risca-de-giz. Ela mantinha a expressão séria por detrás dos óculos com hastes vermelhas. Amarrado em um rabo de cavalo, o cabelo da jornalista não tinha nem um único fio de cabelo em pé. Sua blusa cacharrel preta harmonizava elegantemente com um casaco de mesma cor fechado na região do busto.

 

No teleprompter, o texto que indicava a escalada do jornal, ou seja, os fatos que seriam noticiados naquela edição.

 

— Denúncia de corrupção — leu o homem.

— Liga Pokémon recebe dinheiro ilegal para realização do campeonato do ano que vem — complementou a mulher.

— O Campeão Lance se manifesta dizendo que não existem irregularidades.

— Assalto a banco assusta moradores em Olivine.

— Quadrilha faz reféns. Polícia diz que pode haver ligações com a Equipe Rocket.

— Pokémon desconhecidos são vistos rondando cidades da região de Johto.

— Testemunhas dizem se tratar dos lendários Suicune e Entei. Pesquisadores dizem ser improvável, apesar da aparição no Lago dos Magikarp.

— Polêmica no interior de Johto.

— Um dos treinadores candidatos da competição da Liga Pokémon deste ano acusado de ter ligações com a Equipe Rocket.

— Tendências da estação.

— O fenômeno gastronômico da Cauda de Slowpoke. É calórico?

— Sou Edilson Albuquerque.

— E eu, Mariana Passolargo.

— Agora, no Golden News.

 

Ethan não terminou de ver a vinheta e desligou a televisão.

 

— Ótimo. Agora eu tô até em horário nobre...

 

Não era possível ver a lua no céu de New Bark. Já era costume naquela época do ano que nuvens de chuva cobrissem o céu da cidade e antecedessem noites chuvosas e frias. Dentro da casa de Ethan, no entanto, a última coisa com a qual ele se preocupava era com o tempo do lado de fora. A tensão no ambiente era imensa — afinal de contas, conforme as horas se passavam, maior era o medo de descobrirem o endereço de Ethan, onde temia-se que os repórteres se aglomerariam. Aquilo o deixava nervoso. O garoto espiava por entre as cortinas tentando manter-se escondido, vigiando a rua procurando algum comportamento esquisito, algum rosto estranho.

 

— Ainda não caiu a sua ficha, não é? — perguntou Forrest, sentado no sofá de braços cruzados.

— O que quer dizer?

— Cara, você conquistou as oito insígnias da Liga Pokémon. Você é famoso! Todo mundo agora vai querer saber de você. Não adianta pirar com isso agora, cara. Quando você sair na rua, é aí que as pessoas vão te assediar mesmo.

— Famoso? Por favor. Vou me achar famoso no dia em que eu acordar numa mansão com um baita carrão na garagem e uma piscina de chocolate — rebateu o menino.

— Nem sempre a fama significa grana, cara. Meu tio Bruno nem é um cara tão rico.

— Mas ele ainda é o seu tio Bruno. Eu ainda não posso me comparar a ele.

— Mas e quanto ao seu fã clube de idosos? Também não seguiam você pra tudo que é lado?

 

Ethan virou-se para o amigo e soltou uma bufada de ar do nariz, em um sorriso sarcástico.

 

— Você não quer comparar os velhinhos gente boa com esses carniceiros aí fora, né? — Ethan bufou novamente — desta vez sem risadinhas — ao ver Forrest rir em resposta.

— Gostaria de saber por onde eles andam... Será que vão acompanhar você pela TV?

— Eu acho que sim... Faz um tempo que a gente não se vê.

 

A campainha tocou. Os dois se entreolharam e Ethan se dirigiu até a porta

 

— Cara, você tem certeza de que vai abrir? E se for algum daqueles repórteres?

— Eu fecho, ué.

— Pode deixar que eu atendo — ouviu-se a voz de Marieta.

 

A mulher apareceu na sala secando as mãos com um pano de prato.

 

— Mamãe, pode deixar que eu...

— Você e Forrest. Subam as escadas, deixa que eu resolvo.

 

Os garotos se entreolharam.

 

— Mas a senhora não quer que...

— Deixe comigo, querido — Marieta interrompeu Forrest. — Vocês dois saiam daqui.

 

Os dois amigos assentiram com a cabeça e se dirigiram até a escada que levava ao andar superior que levava aos quartos. A campainha tocou novamente. Ouviu-se a porta abrir e uma voz conhecida cumprimentar Marieta.

 

— Bom te ver, espero que esteja tudo bem.

 

Ethan paralisou. Aquele timbre de voz era extremamente familiar... Chegou aos ouvidos do garoto com um impacto de um soco em sua orelha, capaz até de tirar completamente os sentidos do menino. Suas pernas começaram a tremer e uma forte dor de barriga o acometeu, como se seus órgãos estivessem sendo retorcidos. Ethan segurou o corrimão da escada com força e curvou-se para a frente, com os olhos arregalados e com a respiração pesada.

 

— Ethan, você está bem? Ethan! — chamou Forrest, segurando o amigo e colocando-o sentado em um dos degraus.

— É-é e-ele, Forrest... — disse Ethan em um sussurro.

— Ele quem, cara? — perguntou o moreno, tentando ouvir alguma resposta do amigo.

— O meu pai... O meu pai! — respondeu Ethan, nervoso.

— Seu o quê? — questionou Forrest antes de ser interrompido por Ethan, que levantou-se de supetão e passou pelo amigo, indo em direção à sala.

 

Gold e Marieta tomaram um susto com a entrada repentina de Ethan na sala de estar.

 

— Oi, filho. Você está bem? — perguntou Gold com um sorriso.

— O que você está fazendo aqui? — retrucou o garoto com truculência.

— Não fale assim com o seu pai! — Marieta reprimiu o filho.

 

O tom de voz de Ethan ecoou pela casa e chamou a atenção dos demais presentes ali. Logo, Forrest, Sunny, Chase e Elaine, timidamente, apareceram para ver o que estava acontecendo. A surpresa do quarteto fora imediata.

 

— V-você é o Gold? O s-senhor Gold, vice-campeão da Liga Pokémon! — exclamou Forrest.

 

O homem sorriu de forma simpática e mudou sua postura, alinhando sua coluna e estufando o peito.

 

— Sim, eu sou. É um prazer conhecê-lo.

— O Ethan nunca mencionou que o pai dele era... O senhor!

 

Ethan soltou uma bufada com o nariz.

 

— Se você tivesse um pai como o meu, com certeza você esconderia também.

 

Gold olhou para o garoto e suspirou em desaprovação. Engoliu em seco, não valia a pena responder. Ao invés disso, puxou assunto com os demais amigos do filho.

 

— Vocês não são muito novos para sair em uma jornada Pokémon? — perguntou o homem para Elaine e Chase, que o encaravam como se estivessem diante de um fantasma. — E acho até bonitinho você com esse Dunsparce, garoto.

 

Chase corou. A tremedeira o fez gaguejar ao responder ao homem.

 

— E-ele me da s-sorte...

 

Gold deu risada ao ouvir a resposta do menino.

 

— Não adianta me ignorar não. Eu ainda quero saber o que você está fazendo aqui.

 

Ethan permanecia visivelmente irritado. Não pouparia a grosseria.

 

— Já falei pra você não falar assim com seu pai — disse Marieta em um tom de voz ameaçador.

— Pai? Esse cara nunca foi meu pai. Pelo o que eu me lembre, eu fui criado pela senhora. Esse homem — e fez questão de apontar o dedo para Gold enquanto mantinha os olhos no rosto da mãe — nunca me ligou sequer para desejar um feliz aniversário, um Feliz Natal, nunca me ligou para saber das minhas notas da escola. Eu ainda quero saber o que esse cara tá fazendo aqui. Eu tenho esse direito!

 

Um silêncio tomou conta do lugar. Era possível ouvir as gotas de chuva que começavam a cair lá fora com cada vez mais intensidade. Ethan continuava respirando pesado, com o ódio tomando conta de seu corpo.

 

Gold hesitou por um instante antes de responder.

 

— Você tem razão. A gente às vezes erra, filho...

— Um erro que arruinou a minha vida inteira. Parabéns pra você por reconhecer.

— Mas eu quero me redimir com você.

— Eu acho que seria mais justo se você me perguntasse antes se eu gostaria de me redimir.

 

O garoto deu as costas e seguiu em direção às escadas, subindo em direção ao quarto. Forrest seguiu o amigo enquanto um silêncio pesado era erguido no cômodo anterior.

 

Ethan entrou em seu quarto com certa ignorância. Pegou a mochila em cima da cama e a abriu, dirigiu-se até o guarda-roupas e pegou algumas peças de roupa, colocando-as de qualquer jeito dentro da bolsa. Forrest entrou com certo receio.

 

— Calma cara... Você vai ter um troço.

— Meu pai acha que pode aparecer como quem não quer nada pra fazer amizade com o filho que estampa as manchetes porque ganhou algumas insígnias. Eu quero distância, Forrest, distância!

— Não acha que é melhor ouvir o que ele tem a dizer?

 

Ethan fechou a porta do guarda-roupa com violência.

 

— Se você quer me ajudar mesmo, então convoque a Sunny e os outros. Estamos partindo em viagem.

— Não iríamos pela manhã? — perguntou Forrest.

— Então eu vou sozinho e, quando você quiser, você pode sair. A gente se encontra na estrada.

 

Forrest agarrou Ethan pelo colarinho da camiseta e o empurrou até o guarda-roupa. O garoto encarava o amigo com severidade, com as sobrancelhas franzidas e os dentes fechados com força. Ethan sentiu o impacto das suas costas no armário, mas o assustou mesmo a expressão do moreno.

 

— Olha o jeito que você fala comigo, mané! Eu sou seu amigo, mas eu posso te dar um soco se você quiser.

 

Os dois se encaravam de forma séria, sem sequer piscar, em um momento que pareceu durar uma eternidade. Ethan soltou uma bufada de ar,

 

— Me desculpe, você tem razão.

 

Forrest afrouxou a pegada no colarinho do amigo e ergueu as sobrancelhas, surpreso.

 

— Eu só quero ir embora daqui — desabafou o menino.

 

O moreno sorriu. Soltou o colarinho da camiseta de Ethan e segurou em seus ombros.

 

— Eu vou pedir pro pessoal arrumar as coisas... Vamos pra Cherrygrove logo.

 

Ethan sorriu.

 

— Obrigado, cara.

— Não tem de quê. Eu mais do que ninguém sei como é ter uma família problemática. Tamo junto nessa.

 

Forrest saiu do quarto e deixou Ethan sozinho. O garoto olhou para a janela e viu o vidro molhado. Ao olhar para o céu, viu que piscava de forma colorida. Trovejava — aquela tempestade aproximava-se com força.

A luz deu uma leve enfraquecida quando Forrest começou a descer as escadas. O garoto olhou para a lâmpada, mas aquilo não foi o suficiente para chamar sua atenção.  Prosseguiu seu caminho, passou pelo corredor e logo encontrava-se novamente na sala de estar. A televisão estava ligada. O Golden News ainda estava sendo transmitido, e a televisão mostrava imagens de Ethan saindo do laboratório do Professor Elm junto com o prefeito. Gold assistia ao jornal atentamente.

 

— Então é por isso que ele está atacado desse jeito? Não o julgo, eu também ficaria.

 

Não houve resposta. Forrest logo se apressou para falar com os amigos. Chase e Elaine estavam sentados no sofá, com o menino ainda segurando seu Dunsparce no colo e olhando com o rabo de olho para Gold. Ao lado dos irmãos, estava Sunny que encarava a janela enquanto fazia afago em Cherry. Mesmo com as cortinas fechadas, a menina parecia enfeitiçada com o barulho da chuva que caía.

 

Marieta passou por Forrest e subiu as escadas. O garoto sentiu que ela iria atrás de Ethan.

 

— Pessoal, vamos embora — anunciou o moreno.

 

Os gêmeos assentiram com a cabeça e levantaram-se do sofá. Sunny olhou para Forrest.

 

— Preciso passar no laboratório... Minhas coisas estão lá.

— Tudo bem, passaremos lá primeiro.

— Precisamos pegar nossas coisas lá em cima — avisou Elaine. — Você vem, Ni?

 

Chase confirmou com a cabeça e levantou-se do sofá, abraçado com seu Dunsparce. Os irmãos deixaram a sala em direção às escadas. Na sala, sobraram apenas Sunny, Gold e Forrest. O homem tentou puxar assunto com os jovens.

 

— Vocês vão mesmo sair nessa chuva? Está vindo uma grande tempestade.

— Já enfrentamos coisas piores. O Ethan precisa ir embora — respondeu Forrest.

— Você não deveria dar ouvidos ao Ethan. Ele é um tanto quanto inconsequente...

— Nós somos amigos acima de tudo. E onde ele for, eu estarei lá pra evitar que ele se meta em encrencas.

— Não acha que o melhor lugar pra ele ficar e não se meter em encrenca é justamente estar em casa? — indagou Gold, fazendo Forrest esperar alguns segundos antes de responder.

— No momento, não — disse por fim, encerrando o assunto.

 

Gold não respondeu.

 

— Com licença, senhor — pediu o garoto e se retirou para a cozinha.

 

Elaine e Chase subiram até o andar superior e ouviram vozes conversando. Os irmãos perceberam que tais vozes vinham do quarto de Ethan, que estava com a porta entreaberta. Deu para ver que Marieta e o garoto conversavam de uma forma até bastante incisivos. Os gêmeos estavam dormindo no quarto de Marieta, que havia dormido no sofá — hábito este que não se limitava apenas pelo fato de haver hóspedes em sua casa, mas a mulher adorava assistir televisão e costumava cair no sono durante as madrugadas, geralmente no meio dos filmes de ação que passava naquele horário, o que a fazia acordar de manhã bastante chateada por ter perdido o final da película.

 

— Ele é seu pai, Ethan. Você deve respeitá-lo!

— Eu o respeito, mamãe. Mas o respeito bem longe de mim. E já que ele está aqui, eu prefiro ir embora.

— Filho, é muito mais fácil você se entender com ele.

 

Pode-se ver Ethan colocando a mochila nas costas e arrumando seu boné.

 

— É muito mais fácil eu ir embora dessa cidade. E é o que eu vou fazer.

 

Marieta fechou a cara.

 

— Você não vai sair nessa chuva. Está caindo o mundo! — ela levantou a voz de maneira enfática.

— Eu tenho guarda-chuva, mamãe. E é bom que eu não vou ter repórter nenhum enchendo o meu saco.

 — Você não me provoque, não!

 

Ethan abriu a porta com certa ignorância ao mesmo tempo que Marieta agarrou com a mão esquerda o ombro direito do rapaz. Elaine exclamou e Chase tropeçou no corredor com o susto, o que chamou a atenção de Marieta e de Ethan. Segundos de silêncio separaram o constrangimento entre as crianças e os outros dois.

 

— Sentimos muito! — Exclamou Elaine, corando de vergonha. — Acabamos de chegar, juro que não ouvimos nada!

— Não se preocupe, Elaine. Não teve o que ouvir — disse Ethan, sorrindo. — Aonde vocês vão?

— Forrest pediu pra pegarmos nossas coisas... Nós vamos embora — respondeu a menina.

 

Foi possível de se ouvir um estrondo vindo do lado de fora. Um trovão ribombou com força e a luz da lâmpada que iluminava o corredor diminuiu levemente por uma fração de segundos, de forma quase imperceptível.

 

— Vocês não podem sair nessa tempestade... — suplicou Marieta.

— Vai dar tudo certo, mamãe. Eu bem que queria ficar mais tempo, mas... Não vai dar.

 

O garoto acompanhou os dois mais novos até o quarto de sua mãe. Elaine e Chase entraram primeiro e Ethan os seguiu, encostando a porta atrás de si.

 

— Desculpem por terem presenciado tudo isso — disse o rapaz envergonhado.

 

Chase encarou sua irmã e abraçou Dunsparce com força.

 

— Você vai ficar brigado com seu pai por quanto tempo ainda? — perguntou o menino.

 

Ethan o encarou de forma séria. Pensou por alguns instantes antes de responder.

 

— Quando eu era mais novo, quando tinha sua idade mais ou menos, eu tinha a esperança de que meu pai voltaria pra casa da jornada dele e me contaria todas as histórias que ele viveu. Quais Pokémon ele viu, quantos capturou, as pessoas que ele conheceu... Eu sempre soube que meu pai era um grande treinador Pokémon. Eu sonhei que um dia eu seria tão conhecido quanto ele!

 

O garoto parou por um instante e seu olhar se perdeu. Lembranças vieram à sua cabeça e dominou sua consciência, parecendo levá-la para alguns anos no passado.

 

Era véspera de Natal. Como sempre, Ethan corria pela casa enquanto sua mãe tentava controlar o filho para que ele não se sujasse ou, pior, destruísse a decoração perfeitamente alinhada que ela demorou o dia inteiro para fazer. O garoto parou no lugar assim que o ouviu o primeiro toque do telefone. Sempre havia expectativas nesse dia, por mais que sua mãe sempre dissesse que ele não deveria nutri-las.

 

Ethan correu e alcançou o telefone antes de sua mãe, que o encarou zangada.

 

— Ethan! Já falei que eu atendo o telefone nessa casa!

— Alô! — atendeu a criança.

— Alô? Marieta? — disse a voz do outro lado da linha.

— Não, é o Ethan. Quem é? — o garoto continuava a conversa tentando se desvencilhar da mãe, que tentava atingi-lo com tapas para pegar o telefone.

Oi Ethan. Sou eu, Gold. Sua mãe está?

 

Ethan arregalou os olhos e encarou sua mãe.  

 

— É-é ele! — exclamou o garoto.

Sua mãe está aí, Ethan? Pode passar pra ela?

 

O menino não respondeu. Apenas estendeu o gancho do telefone em direção à Marieta, que deu alguns passos e o pegou da mão do filho.

 

— Oi — respondeu ela.

 

Ela girou levemente ao redor do próprio eixo, ficou de costas para Ethan, que cruzou os braços e encarava a nuca de sua mãe com as sobrancelhas erguidas e boca aberta, curioso para saber o que seu pai dizia.

 

— Deixa eu falar com ele! — pediu o menino em um cochicho insistente, enquanto sua mãe balançava a mão no ar em direção ao filho.

— Sim — pausa. — Sim — outra pausa. — Tudo bem.

 

A ligação não durou muito tempo. Marieta despediu-se e voltou a colocar o gancho de volta no telefone. Olhou para o filho que agora mantinha uma expressão confusa no rosto.

 

— Ué... Ele não quis falar comigo?

— Não, filho. Por quê?

— Estava esperando que ele me desse um “Feliz Natal”...

 

Entre a decepção no olhar do garoto e a expressão de surpresa e aborrecimento de Marieta, um silêncio constrangedor se fez presente.

 

Aquele evento retornava para dentro das memórias de Marieta que ouvia tudo atrás da porta. Fechou os punhos e conteve as lágrimas. O problema de Ethan com Gold era muito mais profundo do que ela imaginava.

 

Dentro do quarto, apenas o silêncio. Chase e Elaine se encaravam. Ethan apenas encarava o chão sentindo certo sentimento de tristeza.

 

— Eu vou esperar vocês lá em baixo — disse o garoto aos amigos, dirigindo-se até a porta.

 

Quando Ethan saiu, Chase sentou-se na cama e olhou para Elaine.

 

— Ni, eu não sei o que estamos fazendo aqui... Tá tudo errado — cochichou o menino.

— Eu também estou achando... A mãe e o pai mal se falam, o vô não tem um bom relacionamento com o próprio filho... Se o Celebi trouxe a gente pra cá, será que é para juntá-los?

— Mas não faz sentido... Seria muito egoísta. E nunca vimos o Celebi, quem garante que não estávamos no lugar errado, na hora errada? E se era pra outra pessoa estar passando na frente do santuário dele naquele dia?

 

Elaine parou para pensar por um instante. Os apontamentos de seu irmão tinham certo sentido.

 

— Então... Por que é que está tudo errado? Por que está tudo tão... Fora de controle?

— Eu não sei — respondeu o garoto, com sinceridade. — Gostaria de saber também...

 

***

 

Por incrível que pudesse parecer, a chuva deu uma amenizada. Não se podia ver a lua ou as estrelas — espessas nuvens negras pairavam sobre a cidade. Apesar de tudo, raios podiam ser vistos ao longe, brilhando forte atrás das nuvens, adquirindo formas fantasmagóricas pelo céu escuro. O telefone tocou e Marieta desceu as escadas com certa pressa para atendê-lo.

 

— Alô? Sim. Está sim. Como é? Ah... Tudo bem, vou avisar pra ele. Pode, pode sim... Acredito que não tenha problema algum. Certo. Até mais.

 

Marieta desligou o telefone. Coçando a nuca visivelmente confusa, dirigiu-se à escada e chamou do térreo.

 

— Ethan, ligou um rapaz aqui dizendo que vai passar para te buscar e te levar no laboratório do Professor Elm.

 

Demorou alguns segundos para que o menino aparecesse, descendo os degraus devagar, coçando a nuca visivelmente confuso.

 

— Hein? Quem?

— Ele disse que o nome dele era Eugine, ou algo do tipo.

 

Ethan congelou.

 

— O Eusine? Como foi que ele conseguiu o número daqui de casa?! E o que a senhora disse? Por favor, que tenha sido que eu não estava em casa...

 — Ele disse que conseguiu o número com o Professor Elm. Esse cara disse que estava indo para o laboratório e que precisava urgentemente de você.

— Esse cara é doido, mamãe! Agora lascou...

— Ele chega em cinco minutos.

— Ótimo. Eu tenho cinco minutos pra sair da cidade. Vambora, galera! — gritou o garoto para o andar de cima, onde Elaine e Chase permaneciam.

 

Forrest e Sunny aproximaram-se de Marieta, olhando para Ethan que permanecia parado alguns degraus acima.

 

— Aqui embaixo já está tudo pronto. O que aconteceu? — Perguntou Forrest.

— O Eusine, cara. Tá vindo pra cá. Nós temos quatro minutos e alguns segundos pra vazar daqui.

 

Pôde-se ouvir uma buzina do lado de fora. Ethan ergueu as sobrancelhas, estarrecido.

 

— Não acredito que ele já chegou...

— Mas o que o Eusine quer? — perguntou Forrest enquanto via Ethan empalidecer.

— Mamãe disse alguma coisa de ele querer falar comigo de forma urgente... Disse que vai até o laboratório do Professor Elm.

— Por que não pedimos carona pra ele? Nós teremos de passar lá de qualquer forma — sugeriu Sunny.

 

Ethan desceu a escada com passadas firmes e apressadas, praticamente correndo, com o dedo em riste na direção da garota.

 

— Você só pode estar maluca! Esse cara não bate bem da cabeça, tu ainda quer pegar carona com ele?

 

Do lado de fora, o som da buzina veio com mais intensidade desta vez.

 

Forrest apoiou a mão esquerda no ombro direito do amigo.

 

— Cara, eu acho que se ele vai para o laboratório e precisa ver você, pode ser sério dessa vez. Não custa nada você ir lá saber o que ele quer.

 

O garoto respirou fundo. Fechando os olhos, deu-se por vencido.

 

— Tudo bem... Vamos lá.

 

 

Eusine ainda buzinava insistentemente quando Ethan abriu a porta da frente. Havia alguns vizinhos que xeretavam por suas janelas — afinal, a insistência de Eusine naquele chamativo esportivo vermelho chamava a atenção dos moradores daquela rua. O garoto deu uma olhada pelos arredores, certificando-se de que não havia repórteres ou curiosos de plantão. Para sua surpresa, a rua estava praticamente deserta.

 

De dentro do carro, Eusine abaixou o vidro quando viu Ethan e Forrest aproximarem-se do veículo.

 

— Já tem um tempo que não nos vemos, não é? — cumprimentou o homem aos dois amigos.

— Por que toda essa baderna, cara? Vão pensar que eu sou delinquente também! — reclamou Ethan, cochichando indignado.

— Escuta, cara. Eu preciso de ajuda sua. Você notou o tempo hoje?

— Notei, ué. Choveu.

— Os relâmpagos, Ethan...

— O que tem?

— Não foram causados pela chuva.

— E foi pelo quê?

— Tenho certeza de que foi pelo Raikou.

 

Ethan e Forrest se olharam por um instante após ouvir as palavras de Eusine, em um silêncio sepulcral. O homem olhava os dois garotos com certa tranquilidade, como se já esperasse aquela reação.

 

— Você disse Raikou? O Pokémon lendário? — perguntou Forrest.

— O próprio.

— Foi mal, cara, mas eu acho difícil. Um Pokémon lendário aparecer aqui em New Bark? Aqui é a roça, nada acontece aqui — comentou Ethan de forma irônica.

 

Eusine soltou uma risadinha.

 

— Um ótimo lugar para um Pokémon assim aparecer, não acha?

— Você tem certeza, Eusine? — Forrest insistiu.

— Eu reconheceria aquele padrão nas nuvens de tempestade em qualquer lugar... Eu os estudo desde criança, eu tenho certeza absoluta.

— E no que você precisa de ajuda?

— Preciso chegar até Raikou. Sozinho, eu não vou conseguir, principalmente porque Entei, além de Suicune, também foi visto por aí.

 

Os dois jovens ergueram as sobrancelhas ao mesmo tempo.

 

— Mas por que esses Pokémon estão correndo por aí? O que eles querem? — perguntou Ethan.

— É por isso que eu estou indo até o Professor Elm e que preciso de vocês para encontrar o Raikou, para tentar descobrir o motivo. Vocês são treinadores muito mais do que qualificados, vocês já os enfrentaram antes no Lago dos Magikarp, vocês batalharam contra a Equipe Rocket... Não poderia contar com outras pessoas, se não vocês — explicou Eusine.

 

Um som de trovão ribombou pelo céu, antecipando um flash de luz roxa que iluminou o céu daquela cidade. Claro que aquilo poderia ser o aviso de chuva que estava por cair, mas agora, aquela tempestade poderia ser muito mais significativa do que qualquer um pensaria.

 

— Tudo bem. Pode contar com a minha ajuda — afirmou Ethan.

— Com a minha também — completou Forrest.

 

Eusine sorriu.

 

— Ótimo! Entrem no carro, o professor já está nos esperando.

— Um momento — pediu Ethan. — Será que você pode dar carona pra uns amigos nossos? Eles vão ao laboratório também.

 

O homem encarou Ethan com a cara fechada.

 

— Pô, você tá achando que eu sou chofer? São quantos?

— Três.

— Cinco pessoas no meu carro... — Eusine suspirou. — Eu não deveria ser um cara tão popular... Certo, podem vir. Mas você tá me devendo uma.

— Tecnicamente eu já paguei, visto que foi você quem veio pedir ajuda pra mim — retrucou Ethan.

 

Elaine, Sunny e Chase já estavam com as mochilas prontas para a viagem, assim como Forrest. Os quatro as juntou no porta-malas enquanto Ethan correu para dentro de sua casa para buscar a sua. Marieta o estava aguardando no pé da escada com ela em mãos.

 

— Você se certificou que pegou tudo, não é?

— Sim, mamãe. Obrigado pela noite.

— Você pode voltar quando quiser. Mas da próxima vez, tente passar uns dias a mais.

 

A mulher sacou uma PokéBola do avental.

 

— Aqui, a PokéBola do Sandslash.

— Pode ficar. Eu andei pensando e acho que tá na hora de ele voltar a protegê-la. Deixe ele aqui por um tempo, eu vou ficar bem.

 

Marieta sorriu.

 

— Eu sei que vai.

 

Ethan colocou a mochila, deu um beijo no rosto de sua mãe e passou pela sala em direção à rua. Gold levantou-se do sofá para despedir-se do filho, mas o garoto sequer o dirigiu a palavra, fechando a porta quando passou por ela.

Pôde-se ouvir o barulho das portas do carro se fechando e o motor sendo ligado. Eusine deu dois toques na buzina como despedida.

 

Marieta dirigiu-se devagar até a sala, onde Gold se encontrava constrangido, ainda olhando para a porta.

 

— Esse garoto tem a personalidade forte, não é? — comentou com um sorriso sem graça.

— Puxou o pai — respondeu a mulher de forma séria. — Bem, eles já foram. Acho que está na hora de você ir também, afinal, já resolveu o que tinha de resolvido.

 

O homem mudou sua expressão. Ergueu as sobrancelhas surpreso e cruzou os braços, virando-se para Marieta.

 

— Faz quanto tempo que não nos vemos? Achei que agora que estamos sozinhos, você iria querer passar um tempo comigo.

— Passar um tempo com você pra fazer exatamente o quê? — retrucou a mulher colocando as mãos na cintura.

— Ah, não sei... Talvez colocar a conversa em dia?

— Gold, com todo respeito, nós não temos conversa nenhuma para colocar em dia. Quando você precisar falar comigo, você tem meu telefone. Não que eu me preocupe, afinal, você não liga nem pra falar com seu filho, não é?

 

Gold franziu a testa. Estava incomodado com as palavras de Marieta. Apertou os bíceps com força.

 

— Mari, você sabe que eu tenho me esforçado para ser um bom pai. Eu mudei. Eu sei que você tem criado o Ethan da melhor forma que pode nesse tempo todo, mas eu quero poder estar mais presente. Eu quero estar com vocês.

 

Ele começou a se aproximar devagar de Marieta, que não se moveu.

O PokéGear de Gold tocou. Ele parou no lugar e, com uma bufada de descontentamento, levou a mão até o bolso da calça preta e pegou o aparelho.

 

— Desculpe. Preciso atender — disse o homem, virando de costas. — Oi, Kris. Sim, ainda estou em New Bark. Não, não se preocupe. Posso ligar pra você daqui a pouco? Estou resolvendo umas coisas aqui com o Professor Elm. Certo, meu bem, obrigado, te amo.

 

E desligou. Voltou a se virar em direção a Marieta que segurava a PokéBola de Sandslash e o encarava com um olhar de repulsa.

 

— Você mudou tanto que precisa mentir pra sua esposa. E ainda quer que eu acredite nisso...

 

Gold riu.

 

— Não fui eu quem te ajudou a capturar esse Pokémon?

— E foi seu filho que o treinou. Imagina o que as garras desse Sandslash poderiam fazer com você...

 

O homem guardou o PokéGear de volta no bolso da calça e levantou as duas mãos para cima, em sinal de rendição.

 

— Eu não menti quando disse que havia mudado. Minha relação com a Crystal é... Complicada. Você não entenderia.

— E não quero entender. Eu só quero que você vá embora da minha casa, por favor.

 

Gold assentiu com a cabeça.

 

— Tudo bem, eu vou. Você sempre foi uma mulher arisca, independente... Acho que foi por isso que eu me apaixonei por você.

 

Marieta rangeu os dentes e apertou o botão da PokéBola. Sandslash surgiu diante da antiga treinadora e posicionou suas garras na frente de seu corpo, de forma ameaçadora.

 

— Adeus, Gold — disse ela.

 

O homem mantinha o sorriso sedutor que Marieta conhecia muito bem. Virou-se e dirigiu-se até a porta. A abriu e, antes de sair, virou-se para a mulher pela última vez.

 

— Espero que um dia você e o Ethan me perdoem.

 

E fechou a porta.

 

Marieta esticou sua postura e esperou por algum tempo antes de respirar fundo e massagear a testa utilizando o polegar e o indicador da mão direita. Estava estressada, mas já havia 13 anos que ela havia prometido que não derramaria uma lágrima sequer por causa daquele homem. E talvez fosse por isso que Ethan sempre a comparava com um Tyranitar às vezes. Uma fera que aprendeu a se fechar em volta de uma armadura intransponível que a impedia de ser atingida e derrubada facilmente. Aquela era Marieta.

 

— Vamos Sand. Precisamos tirar o lixo.

 

 

TO BE CONTINUED...


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