Posted by : Dento Aug 14, 2025

 


Pela primeira vez em algum tempo, Karen não se preocupava com a imprensa do lado de fora. A polícia havia cercado a área e impedido que repórteres e curiosos de plantão entrassem no local.Naquele instante, ao invés de alguma curta declaração decorada escrita pelos seus assessores, havia apenas o silêncio causado pela raiva. Seus olhos, escondidos por um par de óculos escuros, observavam a bagunça que estava o Centro Pokémon. Uma fina poeira se assentava sobre a mobília e o barulho das sirenes do lado de fora disputava atenção com o som que vinha dos encanamentos quebrados, dos vidros estilhaçados das janelas dos quartos e portas dependuradas nos batentes. Fumaça vinha dos corredores e as luzes no saguão piscavam aleatoriamente. Chansey se sentia melhor da batalha de antes e já ajudava a Miltank de Whitney a socorrer os pacientes e levá-los até as ambulâncias que fariam a transferência para hospitais mais próximos.

 

Ela era uma celebridade; a mais bonita, eleita pelas revistas masculinas a treinadora mais atraente de todos os tempos.Magazines de modatraziam páginas e mais páginas sobre detalhes do look que usara no último verão e os segredos de seus cabelos sedosos e brilhantes.Tabloides queriam saber quem era o rapaz que fora visto jantando com ela na última semana. Já se podia imaginar que, após assumir o cargo na Elite 4, os cliques, as matérias, as notas de jornal seriam ainda mais frequentes e incômodos. Claro, agora a opinião pública sobre ela ganhava ainda mais força. Ela era linda. E uma mulher daquelas jamais teria a capacidade de aguentarà pressão do cargo por muito tempo.

 

Uma coisa, porém, a incomodava mais do que a fama e as fofocas: O ser humano. Alguém havia destruído o Centro Pokémon de Violet, ferira Chansey, poderia ter piorado a situação de diversos pacientes internados ali.

 

Por algum motivo, lembrou-se do dia em que fora convidada por Lance para ocupar o cargo que ostentava.

 

Diferentemente de outras reuniões, o Campeão da Liga Pokémon havia marcado aquela em específico na biblioteca do castelo do Planalto Índigo. A sala era enorme, grande o bastante para comportar pelo menos cinco Onix um em cima do outro. As estantes, organizadas em paralelo, eram todas de mogno, tão largas quanto a cordilheira do Monte Silver e tão altas que quase tocavam o teto. As escadas mantinham-se eretas, praticamente coladas às prateleiras; foram especialmente desenhadas para aquela função de auxiliar o interessado leitor a chegar aos livros guardados mais alto — geralmente os de temas mais complexos e científicos.

 

Lance, no entanto, não lia livro algum. Quando as portas da biblioteca se abriram e Karen aproximou-se dele com seus famosos óculos escuros, mantinha os olhos colados em uma revista, a edição mais recente da Faces & Famosos, que curiosamente estampava a foto da convidada na capa. Estava encostado em uma mesa larga, feita de carvalho, onde repousava um computador antigo, cujo monitor branco já se encontrava meio amarelado, um grampeador grande na cor preta, um porta-canetas de madeira com uma PokéBola esculpida no corpo e um montinho de papel sulfite tamanho A4 ao lado. No topo, um documento digitalizado, uma espécie de contrato, grampeado.

 

— Espero que você não esteja considerando que eu vá autografar essa porcaria — comentou ela cruzando os braços sem fazer questão alguma de esconder o descontentamento.

 

Ele, no entanto, sorriu e a respondeu sem tirar os olhos da matéria.

 

— A única assinatura sua que eu preciso é no contrato atrás de mim. Estava me informando mais sobre você.

— Tch. Você é só mais um fã que acha que me conhece porque sabe meu horóscopo.

 

Lance fechou a revista e olhou para a mulher.

 

— Eu acho engraçado que quanto mais eu leio e pesquiso sobre você, menos eu sei quem você é. Você é famosa. Tem uma legião de fãs. Tudo o que você diz e faz repercute em todos os lugares... Mas eu não sei quem você é, Karen Nox.

 

A mulher encarou o ruivo e não mudou a expressão dura. Não se podia ver através dos óculos escuros, mas seus olhos escanearam Lance de cima a baixo.

 

— Você conhece o que eu permito o que você ou qualquer pessoa conheça. Você deveria saber disso, afinal, a fama que você carrega é avassaladora.

— E é exatamente por isso que lhe fiz o convite de fazer parte da Liga Pokémon.

— Parece que nós chegamos no assunto importante — disse Karen removendo os óculos pela primeira vez e colocando-o no decote. Lance, no entanto, continuou olhando para seus olhos. — Por que o seu convite? A Liga Pokémon já não é famosa o bastante? Você não precisa da minha influência para que a mídia fale de vocês.

— Karen, você sabe o porquê dessa reunião ser nessa biblioteca?

 

A mulher desviou o olhar e conferiu os arredores. Havia milhares, dezenas de milhares de livros espalhados e organizados ali. Ela com certeza adoraria conferi-los. Se tivesse tempo para isso. Mas, é claro, seu tempo era sempre contado.

 

— Eu não faço ideia — respondeu por fim.

— Há um ditado que diz que não devemos julgar um livro pela capa. Só podemos dizer se uma história é boa ou ruim quando a lermos. Você tem uma capa bonita, parece ter uma sinopse interessante também... Mas e o seu conteúdo, senhorita Nox? Muitas bibliotecas adorariam tê-la em sua coleção, mas será que seus capítulos são interessantes o bastante para prender a atenção do leitor?

 

Ela riu.

 

— Que piegas essa sua comparação. Eu nunca li nada assim em nenhum livro.

“O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém”.

— Não cite Shakespeare pra mim. Eu atuei em uma peça dele na escola. Foi a pior experiência da minha vida.

— Então você conhece.

 

Karen fez uma expressão quase como se tivesse sido pega fazendo algo infantil e embaraçoso.

 

— Eu leio bastante. Muita coisa. Não só Shakespeare.

— Você tem medo do palco?

— Não. Pessoas. Meu maior problema são as pessoas.

 

Lance pareceu refletir sobre aquela afirmação.

 

— As pessoas realmente são... Complexas.

— Então você me entende.

— Sinceramente, não. Mas estou disposto a tentar — comentou Lance com um terno sorriso.

 

Karen ergueu a sobrancelha. Sem dizer mais nada, aproximou-se da mesinha onde Lance, minutos antes, estava encostado e pegou o contrato que estava em cima da pilha de papel sulfite.

 

— Vou pedir ao meu assessor para dar uma olhada nisso aqui. Mas não espere muito ansioso por uma resposta.

— Só a sua “olhada” já me é o bastante.

 

Algo trouxe Karen de volta para o presente. O toque de Will em seu ombro a despertou do transe.

 

— Tudo bem?

— Shakespeare... — ela citou ainda meio hipnotizada.

— Como? — perguntou Will, confuso. — Você está falando do escritor?

— Desculpa — ela se constrangeu por um momento antes de voltar a focar. — Não é nada.

 

Will e Karen caminharam pelos corredores do hospital até chegarem a uma ala da enfermaria que estava praticamente vazia, não fosse uma Blissey que cuidava de um pequeno ovo Pokémon com eletrodos em sua casca, ligados a um monitor em que era possível acompanhar os batimentos cardíacos da criatura que havia ali. Já exibia rachaduras, provenientes da queda de mais cedo quando rolou no chão sem querer durante a fuga de Elaine da figura misteriosa que a perseguia. Ela jazia sentada, com curativos nos dois joelhos, cotovelos e na têmpora, com uma expressão pesada de preocupação, olhando para o ovo, enquanto seu irmão apoiava um dos braços no ombro da menina, parecendo consolá-la.

 

Ao verem Will, os dois levantaram-se de supetão.

Chase ainda era muito novo, mas não desgrudou os olhos de Karen. Ela era a mulher mais bonita que ele já havia visto na vida — e olha que ele nem tinha tanto tempo de vida assim. Incomodada, Elaine pigarreou alto, tentando chamar a atenção do irmão e libertá-lo do feitiço de Karen, ainda que tenha tido pouco sucesso na tentativa.

 

— Meninos, esta é Karen. Ela é integrante da Elite 4 da Liga Índigo, assim como eu — o rapaz mascarado apresentou a mulher às duas crianças. Eles contrastavam. Will estava sempre exibindo um sorriso simpático. Já sua parceira emanava uma aura densa, escura. Seu rosto bonito trazia uma seriedade tão dura quanto o mármore, quase como se tivesse sido esculpido por um artista da Renascença. Ela os cumprimentou com um breve aceno de cabeça e pareceu não se importar com a encarada que Chase, sem perceber, dava a ela, completamente hipnotizado.

— Vocês são os dois garotos que foram perseguidos por uma criatura esquisita no bosque da cidade, não é? Contem-me mais sobre isso.

 

Chase balbuciou sons inteligíveis. Sua irmã o deu uma cotovelada, o que o fez perceber que estava babando, literalmente. O menino rapidamente ficou constrangido e tentou limpar a boca com as costas da mão.

 

— Por que você não começa, Elaine? — pediu Will, com seu sorriso simpático.

— Um cara. Eu acho que é um cara. Ele era adulto, alto, magro, vestia um macacão e usava um monitor de computador na cabeça. Parecia que o Pokémon que ele tinha, Porygon2, falava com ele... Ele falava quando entrava no relógio desse cara. Ele disparava coisas do dedo como se fosse uma pistola... Eu juro que é verdade, tia... — o tom de voz de Elaine aumentava a cada vez que ela prosseguia na descrição. Era realmente algo assustador.

 

Karen continuava olhando para os destroços próximos a ela. A lâmpada pendurada no teto, pedaços de tinta descascada no chão, um pedaço de calha tombada que era possível ver balançando do lado de fora pela janela.Parecia não ter prestado atenção na conversa de Elaine. No entanto, ela tirou seus óculos escuros do rosto e o guardou no decote.

 

— Você disse “um homem com um monitor de computador na cabeça”, certo?

— Isso mesmo — confirmou Elaine. — A gente sempre guarda os detalhes de alguém que por acaso quer matar a gente...

 

Will a encarava com uma expressão ansiosa.

 

— Acho que agora você entende o porquê de eu ter te ligado, não é? Você não se lembra de nada?

— Claro que eu me lembro. Eu sempre me lembro. Algo tão absurdo assim não dá pra esquecer do dia pra noite. Eu li seu diário uma vez... Aquele que foi publicado e recolhido das livrarias depois por causa das polêmicas ideias malucas sobre construir uma inteligência artificial capaz de monitorar as pessoas e ler, catalogar e aprender tudo sobre seus materiais e costumesque produzirem na internet para construir um salto temporal virtual.

— Do que vocês estão falando? — perguntou Elaine.

— John L. Akihabara — disse Karen, segundos antes de se lembrar da ênfase.Professor Akihabara.

— O maior gênio da tecnologia que eu já conheci — incrementou Will.

— Acredito que Bill, o que mora no Chalé do Mar próximo à Cerulean, não vai gostar nada de ouvir isso.

— Bill é um cara legal. Ele é um gênio no bom sentido. Akihabara era louco.

— Então esse tal de Professor Akihabara é o cara que me atacou? — perguntou Elaine, com uma voz fraca, temendo saber a identidade de seu algoz como se ele pudesse aparecer agora a qualquer momento.

— Muito provavelmente — respondeu Karen, dura, sem poupá-la.

 

Algo no diálogo de Will despertou Chase do transe.

 

— “Era” louco? O que aconteceu com ele? Como alguém que “era” pode atacar agora?

— O professor Akihabara morreu há alguns anos — disse Will, quase que refletindo sobre o assunto. — Ou, pelo menos, é o que tudo indicava.

— Ele foi um dos primeiros grandes cientistas da computação da era atual. Ele desenvolveu grandes pesquisas que hoje permitiram que cientistas da computação como Bill, Lanette e Bebe desenvolvessem o Sistema de Armazenamento de Pokémon.

— O sistema que permite enviar e guardar Pokémon no laboratório através da internet? — questionou Elaine.

— O próprio — respondeu Will.

— Mas... O que aconteceu com o Professor Akihabara? — perguntou Chase.

 

O universo era algo engraçado. Quase como uma grande novela trágica, onde seus personagens pareciam fantoches,reféns da vontade de um Ser Maior, uma força que o regia e determinava o destino de cada um: O Tempo. Escondido no meio da mata escura no interior dos bosques da Rota 32, algo — ou alguém — se fazia a mesma pergunta que Chase havia feito: O que acontecera ao Professor Akihabara? Onde ele havia perdido o controle?

 

Não que soubesse o que era o ato de respirar — não tinha sequer narinas para isso —, mas o ser misterioso tinha a impressão de que estava com falta de ar. Sua cabeça era de uma máquina, mas seu corpo era fraco. Era... humano. E isso ainda era o maior defeito que poderia ter. Mesmo sendo um aparato tecnológico perfeitamente programado para as mais diversas situações, para poder se mover, tinha que dividir o corpo com o que costumava ser um humano — e aquele era seu ponto fraco.

 

O corpo humano pelo qual estava anexado como um parasita era de um velho conhecido dele. Até se podia dizer, em uma situação diferente, que o homem controlava a máquina. Acontece que, o que antes era um cérebro, tornou-se um computador. Não havia nem sequer mais um coração — era um núcleo. Era uma criação que superou as expectativas, mas o criador não podia mais ver.

 

Ele havia se tornado a criatura.

 

Mas ele nunca previu que aquilo poderia sequer acontecer. O grande objetivo de John L. Akihabara era fazer o impossível:desenvolver um Pokémon cibernético, uma forma de vida digital, que pudesse ser trazido para o mundo real. O mais difícil não era a programação — era um assunto que ele dominava —, mas sim a segunda parte.

Suas pesquisas chamaram a atenção de um grupo de investidores que o levaram à Ilha Cinnabar, em Kanto, em um laboratório que já aplicava recursos em pesquisas científicas envolvendo outros assuntos ultra-secretosabrangendo Pokémon, como reviver antigas espécies de fósseis e até mesmo clonagem entre espécies;tabus que o Professor Akihabara conhecia e que sabia que eram assuntos importantes demais para serem evitados. Afinal, era quebrando tais tabus que a ciência trazia as respostas que a humanidade sonhava obter.

 

Tinha uma sala só para ele. Uma sala simples, de paredes lisas, ar condicionado, luzes artificiais brancas e grandes mesas, dispostas uma ao lado da outra, onde computadores de última geração repousavam, dividindo espaço com grandes máquinas e painéis pretos que piscavam luzes coloridas nos cantos do ambiente.Quer dizer, para ele e para outra pessoa. Mas esta vivia em silêncio.

Nunca havia mencionado uma palavra sequerdesde que se juntara a ele — John até chegara a pensar que ela tinha alguma deficiência auditiva, mas ela respondia com acenos de cabeça aos superiores quando eles vinham supervisionar o trabalho. Talvez ela só não gostasse de falar mesmo. Mas, não se podia dizer que ela era feia.Tinha os cabelos na altura do ombro, lisos, milimetricamente cortados para que nem um fio fosse maior que o outro. Tinha traços asiáticos, usava o mesmo jaleco branco que Akihabara, com o logotipo da empresa bordado no busto — Silph Company — e nunca pintava as unhas, apesar de elas estarem sempre impecáveis, cortadas e sempre limpas. O crachá que pendia em seu peito mostrava sua foto e embaixo seu nome: Lucy Lane.

Diferente dela, o professor nem ao menos se preocupava em pentear os cabelos verdes que pareciam que não viam uma escova há semanas já que passava grande parte do seu tempo com os olhos — que pareciam distorcidos graças às lentes grossas nos grandes óculos de grau que tomavam parte de seu rosto — grudados em um monitor e digitando linhas de códigos cada vez mais complexas.

 

Era como se Akihabara estivesse sozinho naquele lugar — e era assim que se sentia e não via o menor problema nisso. Portanto, considerava que estava sozinho em seu local de trabalho e, com isso, a sala era apenas para ele.

 

Conforme as semanas foram se passando, John Akihabara ia progredindo em seu trabalho. Entre bocejos aqui e ali, já tinha um protótipo pronto de uma criatura bicolor tridimensional que havia batizado de “Porygon”, palavra derivada de “polygon”, que, em tradução do inglês, significava “polígono”. Afinal, o programa que criava vida na tela à sua frente era feito disso, de polígonos azuis e cor-de-rosa movido aimpulsos eletromagnéticos do mundo virtual.

 

Os superiores pareceram bem contentes quando John L. Akihabara o exibiu a pleno funcionamento. Lucy Lane, no entanto, não pareceu muito impressionada.

 

As coisas começaram a mudar durante a segunda parte do projeto. Como fazer com que aquele ser virtual pudesse ser trazido para o mundo real?

Aquela pergunta ficou pairando na cabeça do homem por dias.

 

...

 

Os cabelos de Akihabara estavam ainda mais bagunçados naquela manhã, quando se atrasou para o trabalho. Para sua surpresa, porém, ao entrar na sala em que trabalhava, Lucy Lane se encontrava sentada, mexendo justamente no computador em que John trabalhava. O arquivo de Porygon se encontrava aberto e ela digitava quase sem piscar os olhos, não os desviando da tela do computador.

 

— O que você está fazendo? — a voz do professor saíra um pouco mais austera do que pretendia.

— Adaptação — respondeu Lane sem olhar para o homem.

 

Então, sim, ela sabia falar.

 

— Sobre o que é que você está falando? Saia daí imediatamente!

 

Lucy apertou a tecla “Enter” do teclado e parou de digitar. Virou a cadeira em direção a John e o encarou. Ele esperava ter disfarçado melhor o rubor do seu rosto.

 

— Adaptação. Seu projeto era falho porque Porygon não conseguia ser mais do que uma projeção em um sistema operacional. Agora ele pode existir no mundo real, agora ele se adapta. Eu o chamo de “Conversion”. Com ele, Porygon pode emular qualquer coisa e se ajustar a qualquer ambiente.

 

Um estalo. Da tela do computador, um raio de luz forte iluminou o ambiente, forçando Akihabara a proteger os olhos. A temperatura caiu repentinamente, como se o ar condicionado tivesse sido aumentado de uma forma violenta. Ainda assim, John sentiu sua pele queimando, como se tivesse próximo do sol.

 

Segundos se passaram como se tivessem durado uma eternidade. Ao notar que o clarão se dissipara, Akihabara abriu os olhos devagar. Flutuando na sua frente, a sua criação: Porygon, materializado em uma forma física e palpável.

 

A porta da sala se abriu com ignorância. Outros funcionários do laboratório olhavam assustados, dividindo o foco da sua atenção entre Akihabara, Lucy e a criatura na frente deles.

 

A forma física de Porygon oscilou na luz. Segundos depois, transformou-se em um raio e voltou para dentro do monitor.

 

Poucos instantes depois, uma voz grave ecoou pela sala. Um homem alto, vestido com um elegante terno de linho encontrou seu espaço por entre a aglomeração. Sua presença simplesmente gerava um burburinho entre todos os presentes.

 

Giovanni mantinha um sorriso de canto de boca que tinha o poder de gelar espinhas.

 

— Impressionante... Quem dos dois foi o responsável por isso?

 

Akihabara paralisou. Não era possível que aquilo estava acontecendo. O homem de terno pareceu notar e dirigiu o olhar maligno para Lucy Lane.

 

— A senhorita tem talento. Não apenas entregou dados interessantes sobre a possibilidade de se realizar viagens temporais utilizando o mundo virtual, mas trouxe um ser programado em computador para a vida real... Simplesmente incrível.

 

John virou-se para o homem e tentou argumentar.

 

— Senhor, fui eu quem programou o Porygon... Eu estava justamente tentando trazê-lo para a vida real quando...

—Quando sua colega o fez em seu lugar — Giovanni interrompeu-o. — Agradeço pelos seus serviços. A senhorita, por favor, me acompanhe.

 

Lucy meneou a cabeça. John continuou paralisado no lugar, em choque, com um fluxo intenso de pensamentos na cabeça.

 

“Lucy Lane roubou meu projeto. Lucy Lane roubou os louros da minha conquista...”, sua mente entrou em parafuso. Aquelas palavras se repetiam e se repetiam como um boot que não conseguia iniciar o sistema operacional.

 

Quando percebeu que estava sozinho na sala, sentou-se em sua cadeira. Olhou para a tela do seu computador e encarou o reflexo do seu rosto no monitor suspenso. Mexeu o mouse e a imagem apareceu. Sua memória permitia guardar todas as linhas de código que havia feito e, mexendo a fundo no código de programação de Porygon, pode notar onde Lucy Lane começara a mexer.Em geral, códigos de programação seguiam uma lógica, mas alguns programadores costumavamnomear certas variáveis e funções de maneiras peculiares, cada um a seu estilo.

 

Percebeu que o código de Lucy indicava uma configuração ao corpo de Porygon que Akihabara não havia feito. Era a tal “adaptação” que ela havia comentado mais cedo, que o permitia emular um corpo físico no ambiente em que fosse projetado.

 

— “Conversion...” Isso funciona como se fosse um golpe Pokémon... — murmurou Akihabara.

 

Ouvira passos no corredor. Rapidamente, apertou para salvar o projeto e retirou o disquete do computador, guardando-o no interior do jaleco. Teria de estudar aquelas novas informações em casa.

 

Levantou o teclado do computador e recolheu um segundo disquete, colocando-o na máquina no lugar do anterior.Antes de sair da sala, no entanto, olhou para o computador de Lucy. Apertou o botão da máquina e removeu o disquete que provavelmente continha as informações da pesquisa da colega. Guardou-o junto com o backup do seu Projeto Porygon.

 

...

 

Não demorou muito para que John L. Akihabara recebesse a notícia da rescisão do seu contrato com a Silph Company, naquela mesma semana. Uma cláusula do destrato enviado a ele informava que todas as pesquisas desenvolvidas por ele agora eram projetos exclusivosda empresa e que seriam continuadas sem a sua contribuição. O projeto, confidencial, mais tarde seria patenteado e o código de programação de Porygon seria protegido para evitar sua disseminação pirata.

 

O professor, no entanto, não estava preocupado com a demissão. Ele havia progredido bastante nas pesquisas em casa. Havia entendido o projeto de Lucy Lane — um estudo que indicava que era possível viajar no tempo utilizando a computação. A ideia era criar um ponto físico no ciberespaço que serviria de catapulta para algum outro ponto, passado ou futuro, se orientando por milhões de metadados que continham datas, horários e locais, os ingredientes necessários para que um computador pudesse recuperar documentos deletados... Ou algum ser virtual viajasse para aquele ponto através do tempo-espaço digital.

Aquela fórmulaera exatamente como funcionava uma linguagem de programação. E se ele fosse capaz de executar, seria considerado o maior cientista de todos os tempos. Haveria livros sobre ele. Seu nome seria colocado no panteão dos gênios. E Lucy Lane seria apagada da história.

 

Os testes com Porygon acabaram se provando um grande sucesso. Ele conseguia viajar, através da Internet e de dados virtuais, para datas do passado e trazer arquivos do futuro, dados com gigabytes de tamanho, tão imensos que Akihabara não saberia como seu computador processaria. Apesar de utilizar um computador de última geração, seu processador era de apenas 16MB. Não daria conta.

 

Registrara tudo em um fórum na internet que havia criado. Cada passo a passo, cada alteração no código de programação de Porygon, cada descrição do comportamento peculiar daquela criatura. A cada novo dia, Porygon se tornava uma criatura quase independente. Já conseguia adaptar seu corpo digital à forma física do mundo real com mais frequência, mas ainda não ficava mais que alguns segundos antes de ser obrigado a voltar ao computador, com medo de desaparecer para sempre.

 

Com o sucesso dos testes, Akihabara pôs à prova o seu maior estudo: Seria possível um ser humano entrar no mundo virtual e viajar com Porygon através dos tempos?

Para isso, resolvera criar uma versão mais poderosa da sua criação, uma que com certeza aguentaria o peso extra de uma pessoa adulta.

 

Dois meses. Esse foi o período gasto por John L. Akihabara para desenvolver “Porygon2”, a versão melhorada da sua maior criação. Não se via mais polígonos. O corpo agora era perfeitamente arredondado, graças a um novo software de modelagem 3D que havia conseguido de um antigo colega de faculdade.Depois de atualizar o programa que permitiria o Upgradena programação original da criatura virtual em seu fórum na internet, sentia-se feliz como há tempos não se via.

No mesmo dia em que finalizara o novo design de sua criação, a Silph Company anunciava pela televisão a proeza de terem criado um Pokémon digital. A versão 1.0 de Porygon estaria disponível logo menos no mercado. Lucy Lane sorria, cercada dos diretores da empresa, enquanto seu rosto era iluminado pelos flashes das câmeras que registravam aquele momento histórico.

 

Um ódio sem precedentes tomou conta do homem. Olhar o rosto de Lucy Lane na TV mexera com ele.

 

— Lucy Lane roubou o meu projeto. Lucy Lane roubou os louros da minha conquista... — repetiu aquelas palavras em um sussurro, como um mantra. — Mas eles estão atrasados... Porygon2 é a realidade e eu conquistarei o mundo científico com ele! Eu vou apagara existência de Lucy Lane da História, não haverá registros sobre ela em lugar algum, no mundo real ou no virtual.

 

Porygon2 o encarava da tela do computador como se o entendesse.

 

— Conquistaremos o mundo, Porygon2. Lucy Lane é um erro de programação a ser corrigido. Ela mudou o meu destino. Ela tirou a minha glória. E não iremos permitir que esse tipo de erro aconteça no universo novamente.

 

Akihabara levantou e Porygon2 pode ver uma visão rara de seu corpo inteiro, em pé, pois acostumara-se a ver apenas o tronco do homem diante da tela do computador. Vestia um macacão verde que parecia remendado e sujo — sabe-se lá quando fora a última vez que o homem havia tomado banho. John estava disposto a testar a sua ideia final: Escanear-se para dentro do mundo virtual e virar código de programação. Para se proteger de como fosse dentro dos metadados, protegeu a cabeça com um monitor de computador, reformado para não causar desconforto. Sentou-se na frente de seu computador, abriu seu fórum e digitou as últimas palavras antes de prosseguir com seu plano.

 

“A tecnologia mudará e moldará o futuro da humanidade. A humanidade usufruirá da tecnologia ao seu bel-prazer. Se seremos reféns dela? Eu saberei logo menos e voltarei para contar a vocês.

John L. Akihabara”.

 

Abriu o projeto do Porygon2 e, atrás da tela, sorriu para a sua criatura. Digitou um comando no teclado e apertou Enter. Logo, tudo se desfez.

 

Um brilho forte explodiu do monitor à sua frente. Porygon2 saiu da tela e se fundiu ao capacete de monitor que Akihabara vestia. Um choque elétrico explodiu seus tímpanos e seus olhos, o cérebro quase derreteu e o Pokémon, como um parasita, tomou o lugar do órgão, passando a ser responsável por enviar os impulsos elétricos que faziam o corpo humano de seu criador funcionar. O coração parou de bater, mas John continuava vivo. Tornara-se um zumbi.

 

Um portal surgiu do monitor que abrigara Porygon2 instantes antes e sugou o corpo que agora era lar da criatura que antes só existia pelo computador. Com um corpo para chamar de seu, Porygon2 agora podia adaptar-se muito melhor no mundo real.

 

***

 

Takara, o Pikachu de Chase, se mantinha em silêncio, observando o esquisito mundo em que estava. Não havia paredes, mas sim estruturas em diversos formatos que pareciam ser formadas por milhões de letras e números aleatórios.Não havia saída também. A última memória que tinha era de ver seu corpo sumindo no ar e, de repente, se encontrara ali, no escuro, ouvindo ruídos robóticos por todos os lados. Tentou correr, mas não sabia a direção. Tudo era igual. Após o que pareceram ser horas, simplesmente desistiu.

 

Porygon2 se materializou na frente de Takara. Estava sem o capacete formado por tela de computador, mostrava-se em sua forma original, como um Pokémon. Naquele lugar, ele não precisava do corpo humano.

 

— Seja bem-vindo ao meu mundo. Eu não vou te machucar — disse em uma inexpressiva voz robótica.

 

Faíscas começaram a escapar das bochechas de Pikachu que encarava o oponente de maneira assustadora. Tentava não demonstrar medo e se agarrava no fato de que a raiva que sentia do Pokémon à sua frente era maior do que qualquer outra coisa.

 

— Você não vai tentar me machucar porque sabe que já vai estar caído antes de tentar.

— Acredito que não — respondeu Porygon2 de maneira séria. — Você não pode me derrotar porque eu sou parte desse mundo. Esse mundo sou eu.

 

Takara disparou de suas bochechas um golpe elétrico que envolveu o corpo de Porygon2, mas não pareceu feri-lo. Sequer pareceu atingi-lo; o corpo do Pokémon fora separado e dividido em vários pedaços, o que assustou Pikachu.

 

O corpo de Porygon2 se desintegrou e voltou à sua forma completa em um piscar de olhos. O Pokémon cibernético pareceu perceber a surpresa nos olhos de Takara e deixou um olhar malicioso aparecer. A sua voz robótica transmitia um tom de terror, que arrepiou os pelos do Pokémon elétrico.

 

— Eu te disse. Esse é o meu mundo. Eu sou invencível aqui.

 

 


TO BE CONTINUED...





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