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- Capítulo 72
Pela primeira vez em algum tempo, Karen não se
preocupava com a imprensa do lado de fora. A polícia havia cercado a área e
impedido que repórteres e curiosos de plantão entrassem no local.Naquele
instante, ao invés de alguma curta declaração decorada escrita pelos seus
assessores, havia apenas o silêncio causado pela raiva. Seus olhos, escondidos
por um par de óculos escuros, observavam a bagunça que estava o Centro Pokémon.
Uma fina poeira se assentava sobre a mobília e o barulho das sirenes do lado de
fora disputava atenção com o som que vinha dos encanamentos quebrados, dos
vidros estilhaçados das janelas dos quartos e portas dependuradas nos batentes.
Fumaça vinha dos corredores e as luzes no saguão piscavam aleatoriamente.
Chansey se sentia melhor da batalha de antes e já ajudava a Miltank de Whitney
a socorrer os pacientes e levá-los até as ambulâncias que fariam a
transferência para hospitais mais próximos.
Ela era uma celebridade; a mais bonita, eleita
pelas revistas masculinas a treinadora mais atraente de todos os tempos.Magazines
de modatraziam páginas e mais páginas sobre detalhes do look que usara no último verão e os segredos de seus cabelos
sedosos e brilhantes.Tabloides queriam saber quem era o rapaz que fora visto
jantando com ela na última semana. Já se podia imaginar que, após assumir o
cargo na Elite 4, os cliques, as matérias, as notas de jornal seriam ainda mais
frequentes e incômodos. Claro, agora a opinião pública sobre ela ganhava ainda
mais força. Ela era linda. E uma mulher daquelas jamais teria a capacidade de aguentarà
pressão do cargo por muito tempo.
Uma coisa, porém, a incomodava mais do que a
fama e as fofocas: O ser humano. Alguém havia destruído o Centro Pokémon de
Violet, ferira Chansey, poderia ter piorado a situação de diversos pacientes
internados ali.
Por algum motivo, lembrou-se do dia em que
fora convidada por Lance para ocupar o cargo que ostentava.
Diferentemente de outras reuniões, o Campeão
da Liga Pokémon havia marcado aquela em específico na biblioteca do castelo do Planalto
Índigo. A sala era enorme, grande o bastante para comportar pelo menos cinco
Onix um em cima do outro. As estantes, organizadas em paralelo, eram todas de
mogno, tão largas quanto a cordilheira do Monte Silver e tão altas que quase
tocavam o teto. As escadas mantinham-se eretas, praticamente coladas às
prateleiras; foram especialmente desenhadas para aquela função de auxiliar o
interessado leitor a chegar aos livros guardados mais alto — geralmente os de
temas mais complexos e científicos.
Lance, no entanto, não lia livro algum. Quando
as portas da biblioteca se abriram e Karen aproximou-se dele com seus famosos
óculos escuros, mantinha os olhos colados em uma revista, a edição mais recente
da Faces & Famosos, que curiosamente estampava a foto da convidada na capa.
Estava encostado em uma mesa larga, feita de carvalho, onde repousava um
computador antigo, cujo monitor branco já se encontrava meio amarelado, um
grampeador grande na cor preta, um porta-canetas de madeira com uma PokéBola esculpida
no corpo e um montinho de papel sulfite tamanho A4 ao lado. No topo, um
documento digitalizado, uma espécie de contrato, grampeado.
— Espero que você não esteja considerando que
eu vá autografar essa porcaria — comentou ela cruzando os braços sem fazer
questão alguma de esconder o descontentamento.
Ele, no entanto, sorriu e a respondeu sem
tirar os olhos da matéria.
— A única assinatura sua que eu preciso é no
contrato atrás de mim. Estava me informando mais sobre você.
— Tch. Você é só mais um fã que acha que me
conhece porque sabe meu horóscopo.
Lance fechou a revista e olhou para a mulher.
— Eu acho engraçado que quanto mais eu leio e
pesquiso sobre você, menos eu sei quem você é. Você é famosa. Tem uma legião de
fãs. Tudo o que você diz e faz repercute em todos os lugares... Mas eu não sei
quem você é, Karen Nox.
A mulher encarou o ruivo e não mudou a
expressão dura. Não se podia ver através dos óculos escuros, mas seus olhos
escanearam Lance de cima a baixo.
— Você conhece o que eu permito o que você ou
qualquer pessoa conheça. Você deveria saber disso, afinal, a fama que você
carrega é avassaladora.
— E é exatamente por isso que lhe fiz o
convite de fazer parte da Liga Pokémon.
— Parece que nós chegamos no assunto
importante — disse Karen removendo os óculos pela primeira vez e colocando-o no
decote. Lance, no entanto, continuou olhando para seus olhos. — Por que o seu
convite? A Liga Pokémon já não é famosa o bastante? Você não precisa da minha
influência para que a mídia fale de vocês.
— Karen, você sabe o porquê dessa reunião ser
nessa biblioteca?
A mulher desviou o olhar e conferiu os
arredores. Havia milhares, dezenas de milhares de livros espalhados e
organizados ali. Ela com certeza adoraria conferi-los. Se tivesse tempo para
isso. Mas, é claro, seu tempo era sempre contado.
— Eu não faço ideia — respondeu por fim.
— Há um ditado que diz que não devemos julgar
um livro pela capa. Só podemos dizer se uma história é boa ou ruim quando a
lermos. Você tem uma capa bonita, parece ter uma sinopse interessante também...
Mas e o seu conteúdo, senhorita Nox? Muitas bibliotecas adorariam tê-la em sua
coleção, mas será que seus capítulos são interessantes o bastante para prender
a atenção do leitor?
Ela riu.
— Que piegas essa sua comparação. Eu nunca li
nada assim em nenhum livro.
— “O
diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém”.
— Não cite Shakespeare pra mim. Eu atuei em
uma peça dele na escola. Foi a pior experiência da minha vida.
— Então você conhece.
Karen fez uma expressão quase como se tivesse
sido pega fazendo algo infantil e embaraçoso.
— Eu leio bastante. Muita coisa. Não só
Shakespeare.
— Você tem medo do palco?
— Não. Pessoas. Meu maior problema são as
pessoas.
Lance pareceu refletir sobre aquela afirmação.
— As pessoas realmente são... Complexas.
— Então você me entende.
— Sinceramente, não. Mas estou disposto a tentar
— comentou Lance com um terno sorriso.
Karen ergueu a sobrancelha. Sem dizer mais
nada, aproximou-se da mesinha onde Lance, minutos antes, estava encostado e
pegou o contrato que estava em cima da pilha de papel sulfite.
— Vou pedir ao meu assessor para dar uma
olhada nisso aqui. Mas não espere muito ansioso por uma resposta.
— Só a sua “olhada” já me é o bastante.
Algo trouxe Karen de volta para o presente. O
toque de Will em seu ombro a despertou do transe.
— Tudo bem?
— Shakespeare... — ela citou ainda meio
hipnotizada.
— Como? — perguntou Will, confuso. — Você está
falando do escritor?
— Desculpa — ela se constrangeu por um momento
antes de voltar a focar. — Não é nada.
Will e Karen caminharam pelos corredores do
hospital até chegarem a uma ala da enfermaria que estava praticamente vazia,
não fosse uma Blissey que cuidava de um pequeno ovo Pokémon com eletrodos em
sua casca, ligados a um monitor em que era possível acompanhar os batimentos
cardíacos da criatura que havia ali. Já exibia rachaduras, provenientes da
queda de mais cedo quando rolou no chão sem querer durante a fuga de Elaine da
figura misteriosa que a perseguia. Ela jazia sentada, com curativos nos dois
joelhos, cotovelos e na têmpora, com uma expressão pesada de preocupação,
olhando para o ovo, enquanto seu irmão apoiava um dos braços no ombro da
menina, parecendo consolá-la.
Ao verem Will, os dois levantaram-se de
supetão.
Chase ainda era muito novo, mas não desgrudou
os olhos de Karen. Ela era a mulher mais bonita que ele já havia visto na vida
— e olha que ele nem tinha tanto tempo de vida assim. Incomodada, Elaine
pigarreou alto, tentando chamar a atenção do irmão e libertá-lo do feitiço de
Karen, ainda que tenha tido pouco sucesso na tentativa.
— Meninos, esta é Karen. Ela é integrante da
Elite 4 da Liga Índigo, assim como eu — o rapaz mascarado apresentou a mulher
às duas crianças. Eles contrastavam. Will estava sempre exibindo um sorriso
simpático. Já sua parceira emanava uma aura densa, escura. Seu rosto bonito
trazia uma seriedade tão dura quanto o mármore, quase como se tivesse sido
esculpido por um artista da Renascença. Ela os cumprimentou com um breve aceno
de cabeça e pareceu não se importar com a encarada que Chase, sem perceber,
dava a ela, completamente hipnotizado.
— Vocês são os dois garotos que foram
perseguidos por uma criatura esquisita no bosque da cidade, não é? Contem-me
mais sobre isso.
Chase balbuciou sons inteligíveis. Sua irmã o deu
uma cotovelada, o que o fez perceber que estava babando, literalmente. O menino
rapidamente ficou constrangido e tentou limpar a boca com as costas da mão.
— Por que você não começa, Elaine? — pediu
Will, com seu sorriso simpático.
— Um cara. Eu acho que é um cara. Ele era
adulto, alto, magro, vestia um macacão e usava um monitor de computador na
cabeça. Parecia que o Pokémon que ele tinha, Porygon2, falava com ele... Ele
falava quando entrava no relógio desse cara. Ele disparava coisas do dedo como
se fosse uma pistola... Eu juro que é verdade, tia... — o tom de voz de Elaine
aumentava a cada vez que ela prosseguia na descrição. Era realmente algo
assustador.
Karen continuava olhando para os destroços
próximos a ela. A lâmpada pendurada no teto, pedaços de tinta descascada no
chão, um pedaço de calha tombada que era possível ver balançando do lado de
fora pela janela.Parecia não ter prestado atenção na conversa de Elaine. No
entanto, ela tirou seus óculos escuros do rosto e o guardou no decote.
— Você disse “um homem com um monitor de
computador na cabeça”, certo?
— Isso mesmo — confirmou Elaine. — A gente
sempre guarda os detalhes de alguém que por acaso quer matar a gente...
Will a encarava com uma expressão ansiosa.
— Acho que agora você entende o porquê de eu
ter te ligado, não é? Você não se lembra de nada?
— Claro que eu me lembro. Eu sempre me lembro. Algo tão absurdo assim
não dá pra esquecer do dia pra noite. Eu li seu diário uma vez... Aquele que
foi publicado e recolhido das livrarias depois por causa das polêmicas ideias
malucas sobre construir uma inteligência artificial capaz de monitorar as
pessoas e ler, catalogar e aprender tudo sobre seus materiais e costumesque produzirem
na internet para construir um salto temporal virtual.
— Do que vocês estão falando? — perguntou
Elaine.
— John L. Akihabara — disse Karen, segundos
antes de se lembrar da ênfase.— Professor Akihabara.
—
O maior gênio da tecnologia que eu já conheci — incrementou Will.
—
Acredito que Bill, o que mora no Chalé do Mar próximo à Cerulean, não vai
gostar nada de ouvir isso.
—
Bill é um cara legal. Ele é um gênio no bom sentido. Akihabara era louco.
—
Então esse tal de Professor Akihabara é o cara que me atacou? — perguntou
Elaine, com uma voz fraca, temendo saber a identidade de seu algoz como se ele
pudesse aparecer agora a qualquer momento.
—
Muito provavelmente — respondeu Karen, dura, sem poupá-la.
Algo
no diálogo de Will despertou Chase do transe.
—
“Era” louco? O que aconteceu com ele?
Como alguém que “era” pode atacar agora?
—
O professor Akihabara morreu há alguns anos — disse Will, quase que refletindo
sobre o assunto. — Ou, pelo menos, é o que tudo indicava.
—
Ele foi um dos primeiros grandes cientistas da computação da era atual. Ele
desenvolveu grandes pesquisas que hoje permitiram que cientistas da computação
como Bill, Lanette e Bebe desenvolvessem o Sistema de Armazenamento de Pokémon.
—
O sistema que permite enviar e guardar Pokémon no laboratório através da
internet? — questionou Elaine.
—
O próprio — respondeu Will.
—
Mas... O que aconteceu com o Professor Akihabara? — perguntou Chase.
O
universo era algo engraçado. Quase como uma grande novela trágica, onde seus
personagens pareciam fantoches,reféns da vontade de um Ser Maior, uma força que
o regia e determinava o destino de cada um: O Tempo. Escondido no meio da mata
escura no interior dos bosques da Rota 32, algo — ou alguém — se fazia a mesma
pergunta que Chase havia feito: O que acontecera ao Professor Akihabara? Onde
ele havia perdido o controle?
Não que soubesse o que era o ato de respirar —
não tinha sequer narinas para isso —, mas o ser misterioso tinha a impressão de
que estava com falta de ar. Sua cabeça era de uma máquina, mas seu corpo era
fraco. Era... humano. E isso ainda era o maior defeito que poderia ter.
Mesmo sendo um aparato tecnológico perfeitamente programado para as mais
diversas situações, para poder se mover, tinha que dividir o corpo com o que
costumava ser um humano — e aquele era seu ponto fraco.
O corpo humano pelo qual estava anexado como
um parasita era de um velho conhecido dele. Até se podia dizer, em uma situação
diferente, que o homem controlava a máquina. Acontece que, o que antes era um
cérebro, tornou-se um computador. Não havia nem sequer mais um coração — era um
núcleo. Era uma criação que superou as expectativas, mas o criador não podia
mais ver.
Ele havia se tornado a criatura.
Mas ele nunca previu que aquilo poderia sequer
acontecer. O grande objetivo de John L. Akihabara era fazer o impossível:desenvolver
um Pokémon cibernético, uma forma de vida digital, que pudesse ser trazido para
o mundo real. O mais difícil não era a programação — era um assunto que ele
dominava —, mas sim a segunda parte.
Suas pesquisas chamaram a atenção de um grupo
de investidores que o levaram à Ilha Cinnabar, em Kanto, em um laboratório que
já aplicava recursos em pesquisas científicas envolvendo outros assuntos
ultra-secretosabrangendo Pokémon, como reviver antigas espécies de fósseis e
até mesmo clonagem entre espécies;tabus que o Professor Akihabara conhecia e
que sabia que eram assuntos importantes demais para serem evitados. Afinal, era
quebrando tais tabus que a ciência trazia as respostas que a humanidade sonhava
obter.
Tinha uma sala só para ele. Uma sala simples,
de paredes lisas, ar condicionado, luzes artificiais brancas e grandes mesas,
dispostas uma ao lado da outra, onde computadores de última geração repousavam,
dividindo espaço com grandes máquinas e painéis pretos que piscavam luzes
coloridas nos cantos do ambiente.Quer dizer, para ele e para outra pessoa. Mas esta vivia em
silêncio.
Nunca havia mencionado uma palavra sequerdesde
que se juntara a ele — John até chegara a pensar que ela tinha alguma
deficiência auditiva, mas ela respondia com acenos de cabeça aos superiores
quando eles vinham supervisionar o trabalho. Talvez ela só não gostasse de
falar mesmo. Mas, não se podia dizer que ela era feia.Tinha os cabelos na altura do ombro, lisos, milimetricamente cortados
para que nem um fio fosse maior que o outro. Tinha traços asiáticos, usava o
mesmo jaleco branco que Akihabara, com o logotipo da empresa bordado no busto —
Silph Company — e nunca pintava as unhas, apesar de elas estarem sempre
impecáveis, cortadas e sempre limpas. O crachá que pendia em seu peito mostrava
sua foto e embaixo seu nome: Lucy Lane.
Diferente dela, o professor nem ao menos se
preocupava em pentear os cabelos verdes que pareciam que não viam uma escova há
semanas já que passava grande parte do seu tempo com os olhos — que pareciam
distorcidos graças às lentes grossas nos grandes óculos de grau que tomavam
parte de seu rosto — grudados em um monitor e digitando linhas de códigos cada vez
mais complexas.
Era como se Akihabara estivesse sozinho
naquele lugar — e era assim que se sentia e não via o menor problema nisso.
Portanto, considerava que estava sozinho
em seu local de trabalho e, com isso, a sala era apenas para ele.
Conforme as semanas foram se passando, John
Akihabara ia progredindo em seu trabalho. Entre bocejos aqui e ali, já tinha um
protótipo pronto de uma criatura bicolor tridimensional que havia batizado de
“Porygon”, palavra derivada de “polygon”,
que, em tradução do inglês, significava “polígono”. Afinal, o programa que
criava vida na tela à sua frente era feito disso, de polígonos azuis e
cor-de-rosa movido aimpulsos eletromagnéticos do mundo virtual.
Os superiores pareceram bem contentes quando
John L. Akihabara o exibiu a pleno funcionamento. Lucy Lane, no entanto, não
pareceu muito impressionada.
As coisas começaram a mudar durante a segunda
parte do projeto. Como fazer com que aquele ser virtual pudesse ser trazido
para o mundo real?
Aquela pergunta ficou pairando na cabeça do
homem por dias.
...
Os cabelos de Akihabara estavam ainda mais
bagunçados naquela manhã, quando se atrasou para o trabalho. Para sua surpresa,
porém, ao entrar na sala em que trabalhava, Lucy Lane se encontrava sentada,
mexendo justamente no computador em que John trabalhava. O arquivo de Porygon
se encontrava aberto e ela digitava quase sem piscar os olhos, não os desviando
da tela do computador.
— O que você está fazendo? — a voz do
professor saíra um pouco mais austera do que pretendia.
— Adaptação — respondeu Lane sem olhar para o
homem.
Então, sim, ela sabia falar.
— Sobre o que é que você está falando? Saia
daí imediatamente!
Lucy apertou a tecla “Enter” do teclado e
parou de digitar. Virou a cadeira em direção a John e o encarou. Ele esperava
ter disfarçado melhor o rubor do seu rosto.
— Adaptação. Seu projeto era falho porque
Porygon não conseguia ser mais do que uma projeção em um sistema operacional.
Agora ele pode existir no mundo real, agora ele se adapta. Eu o chamo de “Conversion”. Com ele, Porygon pode
emular qualquer coisa e se ajustar a qualquer ambiente.
Um estalo. Da tela do computador, um raio de
luz forte iluminou o ambiente, forçando Akihabara a proteger os olhos. A
temperatura caiu repentinamente, como se o ar condicionado tivesse sido
aumentado de uma forma violenta. Ainda assim, John sentiu sua pele queimando,
como se tivesse próximo do sol.
Segundos se passaram como se tivessem durado
uma eternidade. Ao notar que o clarão se dissipara, Akihabara abriu os olhos
devagar. Flutuando na sua frente, a sua criação: Porygon, materializado em uma
forma física e palpável.
A porta da sala se abriu com ignorância. Outros
funcionários do laboratório olhavam assustados, dividindo o foco da sua atenção
entre Akihabara, Lucy e a criatura na frente deles.
A forma física de Porygon oscilou na luz.
Segundos depois, transformou-se em um raio e voltou para dentro do monitor.
Poucos instantes depois, uma voz grave ecoou
pela sala. Um homem alto, vestido com um elegante terno de linho encontrou seu
espaço por entre a aglomeração. Sua presença simplesmente gerava um burburinho
entre todos os presentes.
Giovanni mantinha um sorriso de canto de boca
que tinha o poder de gelar espinhas.
— Impressionante... Quem dos dois foi o
responsável por isso?
Akihabara paralisou. Não era possível que
aquilo estava acontecendo. O homem de terno pareceu notar e dirigiu o olhar
maligno para Lucy Lane.
— A senhorita tem talento. Não apenas entregou
dados interessantes sobre a possibilidade de se realizar viagens temporais
utilizando o mundo virtual, mas trouxe um ser programado em computador para a
vida real... Simplesmente incrível.
John virou-se para o homem e tentou
argumentar.
— Senhor, fui eu quem programou o Porygon...
Eu estava justamente tentando trazê-lo para a vida real quando...
—Quando sua colega o fez em seu lugar —
Giovanni interrompeu-o. — Agradeço pelos seus serviços. A senhorita, por favor,
me acompanhe.
Lucy meneou a cabeça. John continuou
paralisado no lugar, em choque, com um fluxo intenso de pensamentos na cabeça.
“Lucy Lane roubou meu projeto. Lucy Lane roubou
os louros da minha conquista...”, sua mente entrou em parafuso. Aquelas
palavras se repetiam e se repetiam como um boot
que não conseguia iniciar o sistema operacional.
Quando percebeu que estava sozinho na sala,
sentou-se em sua cadeira. Olhou para a tela do seu computador e encarou o
reflexo do seu rosto no monitor suspenso. Mexeu o mouse e a imagem apareceu.
Sua memória permitia guardar todas as linhas de código que havia feito e,
mexendo a fundo no código de programação de Porygon, pode notar onde Lucy Lane
começara a mexer.Em geral, códigos de programação seguiam uma lógica, mas
alguns programadores costumavamnomear certas variáveis e funções de maneiras
peculiares, cada um a seu estilo.
Percebeu que o código de Lucy indicava uma
configuração ao corpo de Porygon que Akihabara não havia feito. Era a tal
“adaptação” que ela havia comentado mais cedo, que o permitia emular um corpo
físico no ambiente em que fosse projetado.
— “Conversion...”
Isso funciona como se fosse um golpe Pokémon... — murmurou Akihabara.
Ouvira passos no corredor. Rapidamente,
apertou para salvar o projeto e retirou o disquete do computador, guardando-o
no interior do jaleco. Teria de estudar aquelas novas informações em casa.
Levantou o teclado do computador e recolheu um
segundo disquete, colocando-o na máquina no lugar do anterior.Antes de sair da
sala, no entanto, olhou para o computador de Lucy. Apertou o botão da máquina e
removeu o disquete que provavelmente continha as informações da pesquisa da
colega. Guardou-o junto com o backup
do seu Projeto Porygon.
...
Não demorou muito para que John L. Akihabara
recebesse a notícia da rescisão do seu contrato com a Silph Company, naquela
mesma semana. Uma cláusula do destrato enviado a ele informava que todas as pesquisas
desenvolvidas por ele agora eram projetos exclusivosda empresa e que seriam
continuadas sem a sua contribuição. O projeto, confidencial, mais tarde seria patenteado
e o código de programação de Porygon seria protegido para evitar sua
disseminação pirata.
O professor, no entanto, não estava preocupado
com a demissão. Ele havia progredido bastante nas pesquisas em casa. Havia
entendido o projeto de Lucy Lane — um estudo que indicava que era possível
viajar no tempo utilizando a computação. A ideia era criar um ponto físico no
ciberespaço que serviria de catapulta para algum outro ponto, passado ou futuro,
se orientando por milhões de metadados que continham datas, horários e locais,
os ingredientes necessários para que um computador pudesse recuperar documentos
deletados... Ou algum ser virtual
viajasse para aquele ponto através do tempo-espaço digital.
Aquela fórmulaera
exatamente como funcionava uma linguagem de programação. E se ele fosse capaz
de executar, seria considerado o maior cientista de todos os tempos. Haveria
livros sobre ele. Seu nome seria colocado no panteão dos gênios. E Lucy Lane
seria apagada da história.
Os testes com
Porygon acabaram se provando um grande sucesso. Ele conseguia viajar, através
da Internet e de dados virtuais, para datas do passado e trazer arquivos do
futuro, dados com gigabytes de
tamanho, tão imensos que Akihabara não saberia como seu computador processaria.
Apesar de utilizar um computador de última geração, seu processador era de
apenas 16MB. Não daria conta.
Registrara tudo em
um fórum na internet que havia criado. Cada passo a passo, cada alteração no
código de programação de Porygon, cada descrição do comportamento peculiar
daquela criatura. A cada novo dia, Porygon se tornava uma criatura quase
independente. Já conseguia adaptar seu corpo digital à forma física do mundo
real com mais frequência, mas ainda não ficava mais que alguns segundos antes
de ser obrigado a voltar ao computador, com medo de desaparecer para sempre.
Com o sucesso dos
testes, Akihabara pôs à prova o seu maior estudo: Seria possível um ser humano
entrar no mundo virtual e viajar com Porygon através dos tempos?
Para isso, resolvera
criar uma versão mais poderosa da sua criação, uma que com certeza aguentaria o
peso extra de uma pessoa adulta.
Dois meses. Esse foi o período gasto por John L. Akihabara para desenvolver
“Porygon2”, a versão melhorada da sua maior criação. Não se via mais polígonos.
O corpo agora era perfeitamente arredondado, graças a um novo software de
modelagem 3D que havia conseguido de um antigo colega de faculdade.Depois de
atualizar o programa que permitiria o Upgradena
programação original da criatura virtual em seu fórum na internet, sentia-se
feliz como há tempos não se via.
No
mesmo dia em que finalizara o novo design de sua criação, a Silph Company anunciava
pela televisão a proeza de terem criado um Pokémon digital. A versão 1.0 de
Porygon estaria disponível logo menos no mercado. Lucy Lane sorria, cercada dos
diretores da empresa, enquanto seu rosto era iluminado pelos flashes das
câmeras que registravam aquele momento histórico.
Um
ódio sem precedentes tomou conta do homem. Olhar o rosto de Lucy Lane na TV
mexera com ele.
—
Lucy Lane roubou o meu projeto. Lucy Lane roubou os louros da minha
conquista... — repetiu aquelas palavras em um sussurro, como um mantra. — Mas
eles estão atrasados... Porygon2 é a realidade e eu conquistarei o mundo
científico com ele! Eu vou apagara
existência de Lucy Lane da História, não haverá registros sobre ela em lugar
algum, no mundo real ou no virtual.
Porygon2
o encarava da tela do computador como se o entendesse.
—
Conquistaremos o mundo, Porygon2. Lucy Lane é um erro de programação a ser
corrigido. Ela mudou o meu destino. Ela tirou a minha glória. E não iremos
permitir que esse tipo de erro aconteça no universo novamente.
Akihabara
levantou e Porygon2 pode ver uma visão rara de seu corpo inteiro, em pé, pois
acostumara-se a ver apenas o tronco do homem diante da tela do computador.
Vestia um macacão verde que parecia remendado e sujo — sabe-se lá quando fora a
última vez que o homem havia tomado banho. John estava disposto a testar a sua
ideia final: Escanear-se para dentro do mundo virtual e virar código de
programação. Para se proteger de como fosse dentro dos metadados, protegeu a
cabeça com um monitor de computador, reformado para não causar desconforto.
Sentou-se na frente de seu computador, abriu seu fórum e digitou as últimas
palavras antes de prosseguir com seu plano.
“A tecnologia mudará e moldará o futuro
da humanidade. A humanidade usufruirá da tecnologia ao seu bel-prazer. Se
seremos reféns dela? Eu saberei logo menos e voltarei para contar a vocês.
John L. Akihabara”.
Abriu
o projeto do Porygon2 e, atrás da tela, sorriu para a sua criatura. Digitou um
comando no teclado e apertou Enter. Logo, tudo se desfez.
Um
brilho forte explodiu do monitor à sua frente. Porygon2 saiu da tela e se
fundiu ao capacete de monitor que Akihabara vestia. Um choque elétrico explodiu
seus tímpanos e seus olhos, o cérebro quase derreteu e o Pokémon, como um
parasita, tomou o lugar do órgão, passando a ser responsável por enviar os
impulsos elétricos que faziam o corpo humano de seu criador funcionar. O
coração parou de bater, mas John continuava vivo. Tornara-se um zumbi.
Um
portal surgiu do monitor que abrigara Porygon2 instantes antes e sugou o corpo
que agora era lar da criatura que antes só existia pelo computador. Com um
corpo para chamar de seu, Porygon2 agora podia adaptar-se muito melhor no mundo
real.
***
Takara, o Pikachu de Chase, se mantinha em
silêncio, observando o esquisito mundo em que estava. Não havia paredes, mas
sim estruturas em diversos formatos que pareciam ser formadas por milhões de
letras e números aleatórios.Não havia saída também. A última memória que tinha
era de ver seu corpo sumindo no ar e, de repente, se encontrara ali, no escuro,
ouvindo ruídos robóticos por todos os lados. Tentou correr, mas não sabia a
direção. Tudo era igual. Após o que pareceram ser horas, simplesmente desistiu.
Porygon2 se materializou na frente de Takara.
Estava sem o capacete formado por tela de computador, mostrava-se em sua forma
original, como um Pokémon. Naquele lugar, ele não precisava do corpo humano.
— Seja bem-vindo ao meu mundo. Eu não vou te
machucar — disse em uma inexpressiva voz robótica.
Faíscas começaram a escapar das bochechas de Pikachu que encarava o oponente de maneira assustadora. Tentava não demonstrar medo e se agarrava no fato de que a raiva que sentia do Pokémon à sua frente era maior do que qualquer outra coisa.
— Você não vai tentar me machucar porque sabe
que já vai estar caído antes de tentar.
— Acredito que não — respondeu Porygon2 de
maneira séria. — Você não pode me derrotar porque eu sou parte desse mundo.
Esse mundo sou eu.
Takara disparou de suas bochechas um golpe
elétrico que envolveu o corpo de Porygon2, mas não pareceu feri-lo. Sequer
pareceu atingi-lo; o corpo do Pokémon fora separado e dividido em vários
pedaços, o que assustou Pikachu.
O corpo de Porygon2 se desintegrou e voltou à
sua forma completa em um piscar de olhos. O Pokémon cibernético pareceu
perceber a surpresa nos olhos de Takara e deixou um olhar malicioso aparecer. A
sua voz robótica transmitia um tom de terror, que arrepiou os pelos do Pokémon
elétrico.
— Eu te disse. Esse é o meu mundo. Eu
sou invencível aqui.
TO BE CONTINUED...