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Capítulo 74

 


Era dia 5 de agosto. Já fazia um tempo que a lombar de Ethan não sabia o que era uma cama quentinha e um colchão confortável. Não que os futons que usava nas viagens fossem desconfortáveis, mas nada se comparava a estar de banho tomado, alimentado de forma decente — com tudo de melhor que as refeições baratas de um Centro Pokémon tinham para oferecer — e descansar em uma cama de verdade.Ele nem teria se dado ao trabalho de sair da cama naquela manhã se não fosse pela insistência dos seus amigos.

O calor do sol daquela manhã brigava com o frio congelante das sombras. O inverno dali a pouco tempo daria espaço para a primavera e suas temperaturas mais amenas, mas até lá, Ethan iria reclamar do vento gélido que insistia em soprar em seu rosto como se zombasse do garoto de propósito.

 

— Boa sorte lá fora — disse Chase enquanto via abrirem as portas automáticas do Centro Pokémon. — Vou ficar aqui com a Elaine. Ela cismou de que o seu ovo está pra nascer e quer ficar perto dele.

— Não vou demorar muito. Vou aproveitar que estamos aqui pra repor algumas coisas no nosso estoque. Qualquer coisa, me liga no PokéGear — disse o rapaz ao mais novo, que assentiu com a cabeça.

 

A cidade de Violet mantinha seu charme clássico nas calçadas de pedra robusta que fazia parte de sua arquitetura centenária. A ponte de madeira que cruzava o grande lago ao norte levava à Torre Brotinho e estava cheia de pessoas — provavelmente turistas — que tiravam fotos do majestoso templo que em seu interior carregava um enorme pilar que balançava de um lado para o outro, protegendo a estrutura de terremotos e das batalhas Pokémon que costumavam ocorrer ali. O grande bosque que cercava a cidade permitia a coexistência harmônica entre humanos e os Pokémon selvagens que moravam no topo das árvores e que montavam seus ninhos próximos aos troncos e, claro, ter de grande importância o fato de o ar ser limpo, sem poluição, apesar de a cidade ser considerada uma metrópole — não tão grande quanto a capital, Goldenrod, mas grande o bastante para que fosse considerada a segunda maior cidade da região de Johto. A energia limpa e os hábitos dos cidadãos eram um modelo a ser estudado e seguido por outras cidades pelo mundo.

A cada passo que dava, Ethan se lembrava da primeira vez que passara ali, meses atrás, logo no início de sua jornada. Colocou as mãos nos bolsos e deixou se perder em pensamentos. Havia sido ali que conhecera Katherine, a presidente do seu fã-clube e a primeira pessoa que passara a torcer por ele. E não deixou de dar um sorriso ao se aproximar da estação de trem da cidade, onde ali próximo havia conhecido Forrest, que sem muitas perguntas iniciou sua viagem com ele.

Pegou uma PokéBola do bolso e apertou o botão central, liberando um Pokémon de dentro da cápsula. Quilava esticou-se como um felino e alongou seu corpo, dando um sorriso de satisfação. Ethan agachou-se ao lado de seu Pokémon e começou a acariciar seu corpo.

 

— Você lembra, Lava? Foi aqui que você evoluiu, apesar de eu achar que eu não iria achar tão ruim te curtir um pouco mais como Cyndaquil... — o garoto riu com o grunhido de Quilava em resposta. — Aqui nós definitivamente nos tornamos um pouco mais fortes. E pensar que estamos tão perto da Liga Pokémon agora...

— E vocês merecem todos os parabéns por isso.

 

Ethan assustou com a voz. Ao virar-se para trás, reconheceu o rosto de três líderes de Ginásio que enfrentara meses atrás: Falkner, o Líder do Ginásio local, Whitney, de Goldenrod e Bugsy, do Ginásio de Azalea.

 

— Oi gente! — exclamou o garoto com um sorriso. — Como é bom ver vocês!

— Já se passaram alguns meses desde que nos vimos pela última vez, não é?Foi quando lhe entreguei a Insígnia Zephyr — comentou Falkner.

— Você parece que ficou até mais bonitinho desde a última vez que eu te vi — disse Whitney com certa malícia no tom de voz, o que passou despercebido por Ethan.

— Você acha? Eu não fiz nada de diferente ultimamente... — respondeu o garoto tentando olhar para a franja.

— Tal qual um Caterpie, vejo que você cresceu e evoluiu para um Butterfree. Isso é maravilhoso! — disse Bugsy orgulhoso.

— O que vocês estão fazendo? Só fazendo uma excursão aleatória pela cidade? — quis saber Ethan.

— Mais ou menos... — comentou Bugsy com um sorriso sem graça e os braços para trás, como uma criança que acabara quebrar algum quadro da parede da sala e tentava disfarçar dos pais.

— Na verdade, estávamos em reunião até agora a pouco — disse Falkner. — Discutindo algumas coisas sobre a Equipe Rocket.

 

Ethan arregalou os olhos enquanto Whitney encarou o colega com certo desprezo.

 

Equipe Rocket? Esses caras não sumiram depois do que aconteceu no Lago dos Magikarp? — a indagação do garoto soou quase como se tivesse ouvido uma piada indevida e estivesse reprimindo Falkner.

— Você não devia estar falando essas coisas em voz alta — repreendeu Whitney. — Achei que o combinado era justamente resolver isso entre nós e não deixar essa informação vir a público.

 

Falkner balançou a mão direita no ar como se estivesse espantando um mosquito.

 

— Ninguém some assim, do nada — respondeu Falkner. — E, se os rumores forem verdadeiros, nós precisamos estar ainda mais fortes. Com toda a certeza, eles vão vir com tudo, sem nada a perder.

 

Bugsy passou o olhar entre os dois líderes e repousou em Ethan.

 

— Eu me pergunto se seremos capazes de conter uma força dessas.

 

O garoto se sentiu constrangido.

 

— Vocês são líderes de Ginásio. São literalmente os caras mais fortes das suas cidades, vocês não precisam se preocupar com isso. Sem falar que eu derrotei vocês, então eu também sou forte e estou disposto a acabar de vez com esses cretinos!

— Obrigada pela parte que me toca — disse Whitney com ironia.

 

Falkner virou-se em direção à Torre Brotinho que podia ser vista no horizonte.

 

— Derrotar a Equipe Rocket não é apenas uma questão de força, Ethan. Eles são maus. Lembra o que aconteceu no Lago dos Magikarp? Ele agora se chama “Lago da Fúria” por um motivo. Um Magikarp em específico foi obrigado a evoluir e perdeu o controle, graças às ondas de rádio que aqueles bandidos manipularam para tentar comandar os Pokémon. E sabe-se lá quanto tempo essas ondas de rádio ficaram soltas por aí... — o Líder de Ginásio olhou para Quilava. — Às vezes, até mesmo algum Pokémon seu pode ter sofrido interferência genética por causa disso e você não sabe.

 

Ethan hesitou por um momento. Durante a sua jornada, enfrentou a Equipe Rocket algumas vezes, mas nunca parara para pensar no quanto a organização e seus integrantes poderiamrealmente fazer mal para o mundo. Ele só conseguia pensar em uma única pessoa quando ouvia o nome deles: Amanda Green.E Ethan sabia que Amy não era como eles. O motivo de às vezes sentir raiva ao pensar na garota era apenas porque ela era sua ex-namorada e a culpa do término nem foi por causa dela, foi por causa do próprio garoto. E isso ele não perdoava.

Ele foi despertado dos pensamentos quando ouviu o estalo característico de uma PokéBola se abrir próximo a ele. Um pássaro pequeno com penugem verde e bico amarelo cujo formato do corpo era tão arredondado quanto uma bola repousava tranquilo na cabeça de Falkner. Ethan sacou sua PokéDex.

 


— “Natu, o Pokémon Pássaro Pequeno. Como suas asas ainda não estão completamente crescidas, ele só se locomove pulando. Está sempre fixando o olhar em alguma coisa. Ele geralmente procura comida no chão, mas pode, em raras ocasiões, pular em galhos para bicar brotos” — informou o dispositivo eletrônico. Ethan no entanto reparou que a imagem que o aparelho exibia do Pokémon não correspondia ao que ele via em sua frente.

— Por que a asa desse Natu não está como a PokéDex mostra? Parece menor...

— É porque está menor — respondeu Falkner. — Esse Natu nasceu após os acontecimentos no Lago da Fúria. Ele é um Pokémon com uma deficiência física, um resultado vivo dos planos malignos da Equipe Rocket. Mas, felizmente, não parece se importar muito com isso.Ele se dá bem com outros Pokémon.

 

Natu olhou para Ethan, piou e pulou para a cabeça do garoto, olhando-o de cima.

 

— Como está o tempo aí em cima? — brincou Ethan com um sorriso.

 

Bugsy teve um estalo.

 

— Aonde você estava indo? — perguntou a Ethan.

— Eu estava indo no PokéMart repor alguns suprimentos pra viagem. Por quê?

 

O Líder de Ginásio olhou para o trio à sua frente e sorriu.

 

— Vocês topam embarcar numa crisálida?

 

Whitney encarou o colega como se ele tivesse alguma doença contagiosa.

 

— Uma cris-quem? Eu conheço?

— Não é quem. É o quê. Uma crisálida é a fase onde um inseto se resguarda antes de evoluir. É a sua preparação para a vida adulta.

 

A menina bufou pelo nariz.

 

— Você não espera de verdade que a gente vire uma Butterfree, né? Porque isso, tipo, seria impossível.

 

A verdade é que Ethan estava começando a se irritar com as ironias de Whitney. Ele havia esquecido como ela poderia ser alguém insuportável. Bugsy não parecia se importar com isso, no entanto.

 

— Não, claro que não — respondeu com um sorriso. — É só um modo de dizer. Na minha cabeça, é o mesmo sentido: Nos prepararmos para o que vem pela frente.

 

Ethan, Falkner e Whitney se olharam, as sobrancelhas arqueadas, curiosos para saber o que se passava na cabeça de Bugsy.

 

***

 

Quando as portas do Centro Pokémon se abriram, Ethan não viu Chase ou Elaine na recepção. Dirigiu-se então até o balcão de informações onde perguntou a recepcionista sobre os irmãos, que estavam na sala de enfermagem.

O garoto quase se arrependeu de ter entrado chamando pelos gêmeos em voz alta;não apenas por ter visto um olhar de reprovação da Chansey que estava ali, mas porque os irmãos estavam cochilando, sentados em duas cadeiras com as cabeças encostadas uma na outra.

Com um sorriso amarelo sem graça, Ethan coçou a parte de trás da cabeça, embaixo da aba do boné. Chansey voltou a encarar a ficha na prancheta em suas patas — e Ethan achava cômica a possibilidade de um Pokémon saber ler de verdade — e analisar um ovo em uma incubadora à sua frente.

O ovo começou a se mexer dentro da incubadora. Sua casca começou a aparentar rachaduras e Ethan ergueu as sobrancelhas, surpreso. Chansey rapidamente correu até uma mesa lateral, onde um computador estava montado, e apertou um dos botões ao lado do teclado. O garoto ouviu um sinal tocando da recepção e, instantes depois, uma Enfermeira Joy entrou com rapidez na sala, dirigindo-se imediatamente até a mesa onde a incubadora estava repousada.

 

— O que está acontecendo? — perguntou o garoto em um tom de voz alarmante.

— Está nascendo — respondeu Joy com um sorriso. — Seu Pokémon está nascendo!

 

A enfermeira, com o auxílio de Chansey, removeu o ovo da incubadora e o colocou sob algumas almofadas confortáveis, monitorando de perto a casca rachando. Ethan se aproximou com cautela e sentiu um frio na barriga ao ver o ovo descascar.

A cabeça era maior que o corpo e os cabelos eram loiros, com tufos desarrumados no topo, indo até abaixo do pescoço e concluindo-se em uma franja grande. Sua pele tinha um tom arroxeado claro, quase rosado, e a parte superior de seu corpo era cor de creme, também a mesma cor dos bracinhos que se apoiavam na cintura. Os grandes olhos esverdeados — que só não eram maiores que seus lábios róseos — abriram-se curiosos, olhando para cima e para os lados tentando entender onde estava, até que seus olhos cruzaram com os de Ethan, atraídos pela PokéDex do garoto que estava apontada para o Pokémon.

 


Smoochum, o Pokémon Beijoqueiro. Seus lábios são as partes mais sensíveis de seu corpo. Sempre usa os lábios para examinar as coisas eestá sempre balançando a cabeça lentamente para frente e para trás, como se estivesse tentando beijar alguém — informou o dispositivo.

 

O garoto sorriu.

 

— Oi, bebê! Como você está?

 

Não havia nem dez minutos que Smoochum havia nascido, mas ela já sentiu uma sensação única na vida: sua respiração pesar, um peso no peito e um grupo de Butterfree em seu estômago. Ethan era o ser humano mais bonito que já havia visto.

A Pokémon não resistiu aos impulsos e saltou de supetão na cara do garoto e começou a beijar seu rosto. No susto, Ethan caiu no chão e seu pé atingiu a prancheta de Chansey, que deu um gritinho e derrubou-a no chão, fazendo um barulho alto.

Da cadeira, Elaine abriu os olhos. Ainda com sono, demorou alguns segundos para processar a cena à sua frente — Ethan deitado no chão com um Smoochum beijando seu rosto de forma intensa.

 

— P-pai?! O que você tá fazendo?

 

Ela se levantou depressa para ir ajudar Ethan, o que levou Chase a acordar no susto após sua cabeça, antes apoiada no ombro da irmã, vacilar no ar. A Enfermeira Joy olhou para Elaine e assustou-se com a garota chamando Ethan de pai. Não podia ser possível. A explicação mais óbvia que passara por sua cabeça era que a menina o havia chamado assim porque, bem, Ethan agora era pai, tinha acabado de receber um Pokémon recém-nascido. Sim. Essa era a única interpretação possível.

A mulher trocou olhares com Chansey e suspirou de alívio.

 

...

 

Os exames indicaram que Smoochum era um Pokémon bebê saudável. Apesar da paixão avassaladora por Ethan — o que deixou Elaine chateada por ter sido ignorada pelo Pokémon. Afinal de contas, havia sido ela quem havia cuidado do ovo nos últimos dias —, não havia nada de anormal em sua saúde.

Segurando-a em seu colo, Ethan estava diante dos gêmeos na cafeteria do Centro Pokémon. Havia três pratos quase vazios, exceto por migalhas de croissants, bolo e torta diante deles. Chase e Elaine se olharam, ponderando sobre o que o mais velho havia acabado de falar.

 

— Então os Líderes de Ginásio não sabem se a Equipe Rocket sumiu de vez e querem que a gente fique aqui em Violet treinando? — perguntou Chase.

— Em resumo, é isso — respondeu Ethan, acariciando a cabeça de Smoochum. — Se eles, que são os caras mais fortes, estão com medo de não serem fortes o bastante pra encarar uma organização criminosa como os Rockets, o que vai ser de um mero treinador como eu?

— Você tem oito insígnias, não vai perder pra nenhum deles! — exclamou o menino.

— Obrigado pelo apoio, carinha. Mas eu acho que eles têm razão... É sempre bom estar preparado pra uma coisa assim. Sem falar que um treino antes da Liga é sempre bom.

 

Os gêmeos voltaram a trocar olhares preocupados.

 

— Mas isso não vai desviar do nosso foco de chegar em Ecruteak? — perguntou Elaine, preocupada.

 

Ethan ficou em silêncio por um instante e olhou para a mesa.

 

— Eu pensei nisso... E toda vez que eu me perguntava se valeria a pena, meu cérebro me fazia lembrar que em todos os momentos em que eu tive que enfrentar a Equipe Rocket ou algum outro oponente poderoso, Forrest e Amy sempre estiveram comigo. Eu estou sozinho, não tenho eles comigo pra me dar suporte — Ethan olhou para os gêmeos e ficou sem graça ao olhar a expressão dos irmãos. — Não que eu não esteja feliz em viajar com vocês ou não ache vocês bons treinadores. Mas vocês começaram a jornada recentemente, não foi? E por mais que vocês digam que podem dar conta, vocês não sabem como a Equipe Rocket pode ser trapaceira e maquiavélica. Eu tenho oito insígnias e, bem, eu não faço ideia se eu daria conta de confrontar a força dos Pokémon em posse deles.

 

Outra vez, o silêncio tomou conta da mesa, sendo quebrado apenas por Smoochum tentando insistentemente beijar o rosto do treinador.

 

— Nicki, será que você podia me amar menos? — perguntou o garoto ao Pokémon com um sorriso sem graça.

 

Elaine ergueu as sobrancelhas e as orelhas.

 

Nicki?

— É. Apelido de um nome que eu acho bonito. Se um dia eu tiver uma filha, eu vou chamá-la de Nicole. Como a Smoochum é um bebê, e vocês me chamaram de pai por causa disso, então eu achei legal chamar ela assim. Por quê? Acham feio?

 

Para o susto de Ethan, Elaine começou a chorar. Chase encarou o mais velho com uma expressão estupefata. Nenhum dos dois soube o que fazer naquele momento.

As poucas pessoas que estavam na cafeteria naquele momento, sentadas em mesas mais distantes, pararam o que estavam fazendo e dirigiram os olhares à mesa do trio.

 

— Ei, Elaine... O que foi? — perguntou Ethan, preocupado.

— T-tá t-tudo bem... — respondeu a garota em soluços. — E-eu s-só... E-eu s-só...

 

E voltou a chorar. Chorava como uma criança que havia se perdido dos pais em um parque e não sabia como voltar para casa.

Naquele momento, era exatamente como Elaine se sentia. Tão perto e tão próximo do pai que tanto admirava e sem ser reconhecida, ao mesmo tempo em que tudo o que Ethan fazia era tão próximo a ela, dos sentimentos dela, das memórias dela, que ela não sabia o que fazer.

Para piorar a situação, o mais velho retornou Nicki à PokéBola — para sua surpresa e contragosto — e abraçou a menina.

 

— Tá tudo bem, tá tudo bem. Pode chorar.

 

Chase ficou com vergonha quando percebeu que também estava com vontade de chorar. Preferiu baixar a aba do boné e engolir o choro, passando as costas das mãos nos olhos para secar o que estava úmido.

 

***

 

Era dia 6 de agosto. Ethan estava incrivelmente animado. Diferente de noventa e nove por cento das vezes, hoje ele não estava de cara feia, com o seu mau humor típico de quando é obrigado a acordar cedo. O relógio na parede do quarto marcava sete e meia da manhã, pontualmente. Ele já estava acordado, de banho tomado e arrumado. Amarrava o tênis quando o despertador no seu PokéGear tocou em seu braço. Segundos mais tarde, ouviu o beliche do outro lado do quarto fazer barulho com alguém se mexendo por entre as cobertas. Foi quando a voz de Chase, sonolenta, quebrou o silêncio matutino.

 

— Bom dia... Você já está de pé?

— Bom dia. Eu acabei acordando antes do despertador e resolvi me arrumar logo.

— Mas a gente não tem que estar na Torre Brotinho só às nove horas? — Chase, ainda morrendo de sono, focou sua atenção no relógio na parede.

— Sim. Mas já que eu tava sem nada pra fazer... Eu me adiantei.

 

Ethan sorriu. Chase bocejou.

 

— Eu vou acordar a minha irmã.

— Tá bem. Eu espero vocês lá embaixo.

 

...

 

Era Elaine quem se aproximava da grande torre com cara de poucos amigos. Andava como se estivesse se arrastando, forçando-se ao máximo, como se algo estivesse impedindo-a de caminhar para frente, puxando-a para trás — e não tinha nada a ver com a Eevee que repousava em sua cabeça. Mesmo após um café da manhã reforçado, a menina não parecia muito disposta a encarar aquele projeto de treinamento.

Um caminho de pedras partia da ponte sobre o lago e guiava até a entrada da torre. Os beirais do lado de fora do pagode ostentavam delicadeza na grandiosa arquitetura que por si só era de tirar o fôlego. A torre, feita de madeira, tinha três andares e três telhados curvos e gigantescos de cor azulada que ajudavam a desviar a água da chuva. Além disso, também era possível ver algumas pinturas do que pareciam ser, claro, de Bellsprout, o Pokémon símbolo daquela localidade.

No topo das escadas, Falkner aguardava o trio. Sorridente, abriu os braços em um boas-vindas caloroso.

 

— Que bom que vocês vieram! Obrigado pela disponibilidade de encarar esse desafio.

 

Ethan sacou uma PokéBola.

 

— Onde vamos começar? Quais tipos de Pokémon nós vamos enfrentar? Minha equipe já está preparada para enfrentar todos os Bellsprout que tiverem aí dentro!

— Ohoho, eu gosto do seu entusiasmo, mas pode guardar sua PokéBola.

 

Um homem saiu de dentro do templo. Ele era menor que Falkner, um idoso careca de traços asiáticos que trajava uma yukata púrpura que cobria boa parte do seu corpo e uma túnica amarela com estampas de PokéBola sobre seus ombros, por cima. Sob os pés, os chinelos com base de madeira que prendia os pés com uma tira de tecido conhecidos como geta. A barba longa e branca do velho fazia Ethan lembrar-se das imagens dos grandes sábios antigos que as pessoas diziam passar a vida meditando no topo de montanhas. Ou de um mestre de artes marciais exigente.

 

— Mestre Li! — exclamou Falkner, curvando o corpo para cumprimentá-lo. — Estes são os treinadores que falei.

 

O idoso olhou para os três de cima a baixo, coçando a barba e fazendo o que parecia ser ponderações silenciosas.

 

— Muito prazer, eu me chamo Ethan. E estes aqui são Chase e Elaine — apresentou o mais velho. — Por que eu tenho que guardar a PokéBola? Nós não viemos treinar?

— Há muitas formas de treinamento, garoto Ethan. Se você quiser se tornar um grande treinador, usar seus Pokémon é o último passo.

 

Ethan olhou para Li com uma das sobrancelhas erguidas, em uma expressão incrédula. Mestre Li pareceu não perceber, focando a sua atenção para Elaine, que ainda estava emburrada.

 

— Me diga, senhorita. Qual é o seu sonho?

 

Elaine encarou o Mestre.

 

— Atualmente, seria dormir um pouco mais — e recebeu uma cotovelada do irmão bem no meio das costelas. — Mas eu quero ser uma mestra de Pokémon. Viajar o mundo todo e treinar Pokémon de todo tipo. Igual ao meu pai.

 

Ethan não percebeu a olhada discreta que a menina lhe deu.

 

— Hum. Interessante. É um sonho muito ambicioso, mas eu gosto de como você fala sobre ele. Vai exigir de você muitas habilidades de raciocínio para saber como capturar cada um dos Pokémon do mundo. E você, meu jovem?

 

Chase olhou para o Mestre Li levemente envergonhado. Deu uma leve comprimida em Pikachu na direção do seu peito, como se Takara fosse um bicho de pelúcia.

 

— Bem, eu gostaria de fazer a PokéDex perfeita... Coletar os dados de todos os Pokémon do mundo, cada um deles. É meio bobo, mas... Eu gosto.

— Não é nada bobo — disse Li com um sorriso terno. — Como o de sua irmã, é algo que vai exigir muito da sua capacidade de observação para conseguir coletar dados de seus comportamentos e interações no meio em que eles vivem. E você, meu rapaz? Qual é o seu sonho?

 

Ethan, que estava em silêncio desde que ouviu a pergunta feita para Elaine a primeira vez, demorou alguns instantes para responder.

 

— Qual é o meu sonho? Eu sei lá. Acho que não tenho um.

 

Mestre Li olhou para Ethan coçando a barba branca e soltou uma respiração profunda e sonora. Parecia incomodado com a resposta, mas nada disse. Cruzou os braços e deu um passo para o lado, liberando a entrada para a Torre Brotinho.

Havia um sino próximo à porta. Mestre Li aproximou-se e o tocou.

O som ecoava por todo o interior da torre. As madeiras amplificavam-no como fogo na palha. O grave reverberava e podiam-se sentir vibrações dentro do estômago.

Outros três monges apareceram, estes, mais novos que o Mestre Li. Apesar de não completamente carecas, tinham a cabeça raspada. Usavam um robe longo, que vestia seus corpos por inteiro. As cores variavam entre laranja, marrom e amarelo.

Tal qual Falkner, cumprimentaram Li curvando o corpo para frente.

 

— Monge Nico, por favor, leve a menina com o Eevee. Vamos melhorar o humor dela, sim? — pediu Li com um sorriso convidativo.

— Sim, mestre — respondeu Nico, o monge de robe marrom. — Por aqui, senhorita.

 

Elaine demorou alguns segundos para subir as escadas em direção ao interior da torre. Olhou para trás e hesitou por alguns instantes por ver que Ethan e Chase não a estavam seguindo. O Monge Li sorria para ela, a incentivando a continuar. Nico encostou a mão no ombro da menina e a conduziu para o interior da torre.

 

— Monge Ping, por favor, leve o senhor Falkner até os outros — disse Li ao monge que vestia o robe amarelo. — E quanto ao menino, cuide dele, por favor, monge Koji.

 

Os dois monges se curvaram diante de Li e conduziram Chase e o Líder de Ginásio para o interior da torre. Do lado de fora, sobraram ele e Ethan, que calado, parecia aguardar o seu destino.

 

— Eu me lembro de um jovem que no começo do ano apareceu aqui com um pequeno Cyndaquil. Ele usava o mesmíssimo boné que você está usando agora. Eu acredito que ele só era um pouco mais hiperativo que o rapaz em minha frente — disse Li com um sorrisinho. O velho sorria demais, pensou Ethan. Ninguém podia ser tão feliz desse jeito. — Eu achei que não o veria de novo depois de ter derrotado quase todos os Bellsprout da torre.

 

Ethan se engasgou com a própria saliva e passou a tossir.

 

— O SENHOR TAVA NESSE DIA?!

— Eu sempre estou aqui. Todos os dias.

 

O silêncio constrangedor só não tomou conta de vez por causa da tosse engasgada de Ethan.

 

— Eu te fiz uma pergunta agora a pouco. Qual é o seu sonho?

 

Ethan respirava fundo, tentando parar de tossir. O garoto estava vermelho, como se tivesse comido uma fruta Tamato.

 

— Eu já respondi pro senhor. Eu não tenho um sonho.

— Então por que você viaja? O que te motiva a treinar Pokémon?

— Eu só queria sair de New Bark. Eu não aguentava mais aquela cidadezinha. Todos os dias sendo a mesma coisa. Eu só queria uma desculpa pra me mandar de lá.

— E você não encontrou nada com o que você se importasse, além de você mesmo? — Mestre Li coçava a barba.

 

Ethan respirava fundo. Tossia quase nada. Imediatamente, a imagem de Amy veio à sua cabeça. O garoto balançou a cabeça tentando afastar a lembrança.

 

— Claro que eu encontrei. Mas isso não vem ao caso! O que isso tem a ver com o treinamento? Como isso vai me fazer ser um treinador Pokémon melhor?

 

Mestre Li olhou para Ethan e começou a caminhar em direção ao interior da torre. Instintivamente, o garoto o seguiu.

Talvez pela sua passagem ter sido rápida, talvez por ter sido há meses, mas Ethan tinha se esquecido completamente de como a Torre Brotinho era magnífica por dentro. Havia estátuas de Bellsprout por todos os lados, esculpidas em madeira e outras feitas em argila, dos mais diversos tamanhos. Os monges realmente adoravam aquele Pokémon.

Apesar de tudo, o grande eixo central de madeira que tinha por volta de uns trinta metros de altura era o que mais fazia a mente de Ethan explodir. Como poderia aquele troço mexer de um lado pro outro e não derrubar aquela estrutura imensa?

 

— Em uma batalha Pokémon, a última coisa que um bom treinador faz é comandar os golpes para um Pokémon. Tudo começa bem antes — Mestre Li apontou para a têmpora. — Bem aqui.

— Belo discurso, vô. Típico do que eu esperaria de um monge budista que passa metade da vida meditando.

 

Li não pareceu se ofender com o comentário.

 

— A meditação é muito importante, meu jovem. E é o que falta pra você ser um bom treinador.

— Eu já tenho oito insígnias. Eu acho que já sou um bom treinador.

— Então o que é que você procura aqui?

 

Ethan hesitou por um instante antes de responder.

 

— Eu quero ficar mais forte. Quero impedir que a Equipe Rocket volte e cause mais problemas pra Amy.

— Ha! Então a sua motivação tem nome. O seu sonho se chama “Amy”. Entendo.

 

Se alguém que estivesse passando por ali tivesse que descrevê-lo naquele momento, com certeza diria que Ethan havia comido pelo menos dois quilos de fruta Tamato de tão vermelho que seu rosto havia ficado.

Os dois cruzaram o grande salão principal e subiram escadas. No segundo andar do pagode, um corredor silencioso era dividido entre portas de madeira dos dois lados que davam para salas aparentemente vazias e o lento e hipnotizante balançar do eixo central. Ethan, no entanto, não conseguiu não soltar um suspiro surpreso quando passou por uma das janelas e viu vários monges de olhos fechados, concentrando-se em alguma coisa que, pensou ele, fosse a tal meditação.

 

— O eixo central da Torre Brotinho é como o corpo de um Bellsprout, se adapta às situações. A torre não foi construída para lutar contra um terremoto, ela foi construída para se adaptar ao choque e ainda se manter firme. Assim como um Bellsprout, que finca suas raízes na terra e se adapta ao movimento do oponente, sendo muito difícil de derrubá-lo sem uma boa estratégia. Você, meu jovem, precisa entender que você pode ter uma grande força, mas sem uma Mente de Cristal, você não conseguirá se adaptar às surpresas dos seus próximos desafios.

— “Mente de Cristal”? O que é isso?

— Um cristal é um sólido cujas moléculas estão organizadas em um padrão simples e bem definido. O conceito da Mente de Cristal é justamente você poder ter controle da situação sem se distrair com pensamentos alheios. Ter a visão dos próximos passos antes de fazê-lo.

 

Pela primeira vez desde que chegara, Ethan ficara interessado de verdade.

 

— E como eu consigo desbloquear essa Mente de Cristal?

— É um processo. Não existem máscaras, você precisa encarar o seu verdadeiro eu e lutar com toda a parte negativa do seu ser. Ansiedade. Hiperatividade. Medo. Angústia. Tudo de negativo que você possa ter e que te impede de crescer como treinador. E, principalmente, como ser humano.

— O senhor fala como se isso fosse doer de verdade — disse Ethan com um certo tom de deboche na voz.

 

O garoto e o Mestre entraram em uma das últimas salas do corredor — a penúltima sala à direita, para ser mais exato. Havia alguns tapetes no chão, a sala era iluminada por velas em candelabros e um cheiro doce emanava pelo ar.

Mestre Li passou pelo garoto e fechou as cortinas de seda, vedando a luz do sol. Sem pressa alguma, passou a acender velas que estavam em cima de móveis de madeira encostados nas paredes. Tão discretos que Ethan só notou porque Li se dirigiu a elas.

 

— Mas vai doer de verdade — disse o idoso enquanto acendia as velas. — O processo é doloroso. Há um preço a se pagar para se ter um Coração de Ouro valente, uma Alma de Prata límpida e uma Mente de Cristal inabalável. Quando todos eles convergem, você se torna um Mestre Pokémon.

— Mas eu não tenho o sonho de ser um Mestre Pokémon. Eu só quero proteger aqueles que eu amo.

— E ser um Mestre Pokémon não é isso? Ter a sabedoria de poder controlar os poderes dos Pokémon para fazer o bem para aqueles que você ama e para todas as pessoas que precisarem?

 

A fumaça doce das velas fazia Ethan se sentir embriagado. Seus olhos começaram a ficar pesados e seu corpo começou a pesar.

 

— Qual é o seu sonho, garoto? Você precisa encontrar uma resposta.

 

Um baque surdo no chão de madeira. O corpo de Ethan jazia adormecido enquanto sua consciência era transportada para outro plano.

Dentro dos próximos dias, o Mestre Li não precisaria mais repetir a pergunta para ele. Ethan, sozinho, começaria a fazê-la para si próprio.

 

— Qual é o meu sonho?

 

 

TO BE CONTINUED...





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